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  • Marcia Rangel Candido

ROLÊ NO CENTRO: CIDADE, CONSUMO E VIGILÂNCIA


Torquato Neto, Inimigo/Medo n.1, s.d.

Todo ano, no mês de dezembro, a população de Pindamonhangaba – SP enche as ruas do centro, para a alegria de uns e a infelicidade de outros. O começo de “Rolê no Centro” (https://www.youtube.com/watch?v=PaKYUvxZE2w) já revela o que virá no curta-metragem produzido recentemente por Clara Chroma. A partir de filmagens próprias e imagens disponíveis na internet, a cineasta constrói um argumento acerca das contradições do viver contemporâneo. Incrível que em tão poucos minutos ela nos apresente um cenário tão inquietante da complexa totalidade. Óbvio que, como em todo discurso, há uma abstração, um recorte do real que nos direciona para as relações entre cidade, vigilância e consumo. Relações que são ali apresentadas politicamente, não de maneira didática e maniqueísta, mas por uma montagem que associa opostos e causa incômodos. Portanto, para além de um argumento a ser entendido, o filme é uma experiência, durante a qual estamos imersos nos conflitos entre centro e periferia nas cidades brasileiras.

O filme inicia mostrando um cenário idílico de uma cidade do interior de São Paulo que se reúne no final do ano para comemorar o natal com crianças visitando Papai Noel, jovens passeando e adultos comprando. As palavras tomadas emprestadas da mídia corporativa nos introduzem ao clima festivo e ao incentivo ao consumo típicos da época: há espaço para todos no centro da cidade. Há espaço para todos no centro da cidade? A sociologia já respondeu essa questão com vários nãos que em comum se esforçam por demonstrar que o público é um local de desigualdades e segregações. Há o uso correto da cidade que determina também os corpos apropriados para cada região. Um policial entra em cena para recomendar atitudes adequadas aos que vão ordeiramente comprar, inclusive recomendações específicas para as mulheres e onde suas bolsas devem ficar. Esse controle e suas mediações de gênero não são novos e estão relacionados com a necessidade da constante valorização do valor, tanto no âmbito do consumo quanto do trabalho – caso ilustrado pela criminalização da vadiagem nos primórdios do capitalismo, quando o ócio era punido para a imposição da disciplina laboral.

Como esperado em uma sociedade tão desigual quanto a nossa, o clima natalino logo é confrontado por usos desviantes da cidade. O conflito na praça central se torna aparente – para não mais desaparecer – quando plantas são pisoteadas, um enfeite de cimento é quebrado ao servir como banco e a casinha do Papai Noel é pichada. O clímax se dá em um duplo momento: o presépio é incendiado e é anunciada uma operação da polícia militar chamada de “mão de ferro” que tem como objetivo aumentar a sensação de segurança. O centro é maculado e logo a vigilância tem que explicitamente assumir sua função – sem a devida fiscalização, o local pode sofrer novos atos de vandalismo. Aos que geram ruídos na produção de mais-valor no momento destinado ao consumo será controlada a circulação. A tríade está formada: cidade, consumo e vigilância.

Praça de Pindamonhangaba - presépio natalino em chamas, novembro de 2015

Os culpados por explicitar quantos quilos de desigualdade constroem a ordem são jovens da periferia que vão fazer um rolê no centro comercial. A semelhança com o fenômeno dos rolezinhos que ocorreram no pós junho de 2013 é destacada pela própria cineasta. Repetem-se aqui o caráter coletivo da vivência desses jovens negros e a sensação de perigo que aflige as elites. Está explícito que uma das principais mediações para a compreensão do medo suscitado pelos rolezinhos é a questão racial: corpos negros ocupando espaços brancos (os shopping centers).

Ao analisar o tema, Teresa Caldeira (2014) [http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002014000100002&script=sci_arttext] aponta a antiguidade do fenômeno e, em sua genealogia, relembra a recorrência dos encontros de jovens periféricos por conta de expressões artísticas: hip hop, rap, pichação… Porém, percebe que há uma inflexão depois das manifestações de junho, durante a qual os rolezinhos têm uma visibilidade fugaz, relacionada ao fato de os encontros terem uma relação mais intrínseca com o consumo e, muitas vezes, com o funk ostentação. Por conta disso, uma parcela da esquerda e dos analistas sociais rapidamente criticaram o fenômeno, pois “não era um protesto contra os males do mundo, era uma forma de procurar espantá-los por algumas horas de forma segura, alegre e num ambiente valorizado pelos desejos de consumo” (SERRANO, 2014 - https://www.cartacapital.com.br/sociedade/rolezinho-capitalismo-e-gente-bonita-6318.html).

A partir do filme, desconfio dessa alegria e respondo, aos que consideram o fenômeno como apolítico, que, se o horizonte é a crítica, devemos analiticamente abarcar as formas de conflito que estão para além das demandas explícitas e da interlocução com a política institucional. Aqui a cena não é a mesma que a do filme “Hiato” (https://www.youtube.com/watch?v=UHJmUPeDYdg), no qual integrantes do movimento de trabalhadores sem teto vai ao shopping de modo organizado para dar visibilidade às suas pautas. Essa ação também estava permeada por conflitos e deve ser elogiada estrategicamente, porém não deve invisibilizar outras políticas possíveis, pois nos rolezinhos e no natal de Pinda a política está no incontrolável. Respondo também que a crítica ao consumo deve ser mais sofisticada do que uma distinção – muitas vezes moral e proveniente daqueles que têm maior capacidade de compra – entre o necessário e o supérfluo. Essa fronteira não se resume ao que comemos em uma sociedade que promove a inserção a partir do consumo e do endividamento, um processo que aumentou consideravelmente no lulismo. Reservar os desejos tão estimulados por nossa sociabilidade às classes dominantes e definir o necessário apenas como comida é reforçar a lógica da vigilância, aquela que dita os usos e corpos adequados na cidade.

Pindamonhangaba está, portanto, diante de um fenômeno extremamente contraditório pautado pelo consumo, mas que gera disrupções na reprodução cotidiana do capitalismo. Está em questão a dicotomia entre inclusão e exclusão, algo que, não resolvido, é aceito pela cineasta e se reflete na maneira dialética que o filme é construído. A montagem é extraordinária, pois se vale do remix para nos desestabilizar com jingles de natal e raps convivendo desarmoniosamente. Transformar tantas contradições em um curta-metragem só é possível graças à habilidade em edição que Chroma vem desenvolvendo em suas experimentações.

Por fim, o filme defende que o diálogo não é uma solução simples para as desigualdades que vivemos, pois demonstra que há muito conflito e poder em qualquer encontro. Porém, ainda assim, a praça é ocupada e é no glitch - nas falhas construídas propositadamente na montagem – que esteticamente fica expressa a possibilidade de ruptura. Aos que não querem se conciliar com o status quo, o cenário não é nada reconfortante, porém o filme e as fraturas que ele ecoa são rupturas com esse desconforto cotidiano. Não é, portanto, um curta pessimista, mas que nos lembra a necessidade de uma crítica radical para a suplantação do capitalismo. Por conta disso, no contexto em que vivemos, Rolê no Centro é imprescindível.

Guilherme Benzaquen é cientista social e atualmente realiza o Doutorado em Sociologia pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (PPGS/UFPE), onde desenvolve pesquisa relacionada a saques e ações coletivas.

Contato: benzaquenguilherme@gmail.com

 

Editora responsável: Luna Ribeiro Campos

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