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Marcia Rangel Candido

RESENHA: MULHERES E AGROECOLOGIA - TRANSFORMANDO O CAMPO, AS FLORESTAS E AS PESSOAS


Assentamento 12 de Outubro - Horto Vergel, Mogi-Mirim, São Paulo. Agosto 2018

De que adianta termos produtos limpos de agrotóxicos, se estão sujos com os sangues das mulheres?

Neneide, agricultora, no II Encontro Nacional de Agroecologia. Recife, 2006.

Em Mulheres e Agroecologia: transformando o campo, as florestas e as pessoas, Emma Siliprandi lança um novo olhar sobre as dinâmicas da agricultura familiar ao resgatar as trajetórias de treze lideranças que integram entidades ligadas à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). A autora reflete sobre as experiências das mulheres rurais em suas famílias, comunidades e nos movimentos sociais do campo, traçando paralelos entre suas narrativas e o histórico da formação do movimento agroecológico no Brasil.

Os longos trechos de transcrição das falas das entrevistadas, a ausência do anonimato e as muitas fotografias das atividades e dos rostos das entrevistadas permitem criar diálogos paralelos entre os leitores e essas mulheres. Por diversas vezes, Siliprandi parece simplesmente nos deixar ali, sentadas no alpendre, na cozinha ou na mesa junto a suas protagonistas, enquanto os cheiros, as temperaturas e os sons que situam as narrativas adentram nossos imaginários.

As falas são aglutinadas em blocos que tratam de vivências de discriminação de gênero associadas a marcadores de raça e classe ao longo das vidas narradas. Destacam-se suas relações familiares, especialmente com maridos e filhos, e suas trajetórias de aproximação com as pautas da Agroecologia e do movimento feminista. Um aspecto especialmente interessante no livro trata-se das análises das próprias entrevistadas sobre as situações em que elas, ou suas companheiras, identificam a dominação masculina na agricultura familiar. Ao mesmo tempo em que as narrativas elucidam as singularidades das experiências da mulher rural, são capazes de gerar profundas conexões com leitoras de outras realidades, em suas atividades de militância, seus papéis sociais de mães, filhas, esposas, nas universidades e na vida profissional.

Em Mulheres e Agroecologia, os relatos da ocupação de espaços marcadamente masculinos por mulheres rurais reforçam a necessidade do aprofundamento das reflexões de gênero no campo agroecológico e, ao mesmo tempo, desmistifica o lugar comum da agricultura familiar - permeada pelo mito da unidade familiar funcional, gerida coletivamente por seus membros e pela complementariedade harmoniosa da divisão do trabalho.

O livro mostra, página a página, como as subjetividades dessas mulheres foram (e continuam a ser) construídas por meio de trânsitos nos interstícios da dominação masculina, traçando um paralelo com os espaços que coletivamente consolidaram ao longo das últimas duas décadas. Sua importância nos remete a Brah (2006), que destaca como focalizar experiências permite compreender de que maneira as práticas econômicas, políticas e sociais produzem poder, mas também como é a prática que efetivamente o transforma.

A primeira provocação que acompanha o fim da leitura de Mulheres e Agroecologia relaciona-se aos limites que o uso político da agricultura familiar traz ao aprofundamento das reflexões acerca de suas dinâmicas internas. Isto porque, as relações de gênero nas diversas realidades da agricultura familiar foram amplamente ignoradas no início de seu processo de consolidação, sem dar conta das relações de dominação e poder entre homens, mulheres e jovens. Neste sentido, Siliprandi chama a atenção para os avanços em termos de políticas públicas para mulheres que passaram a ocorrer desde 2003, mas argumenta que a desigualdade no acesso à terra, aos meios produtivos e a desvalorização cultural e material do trabalho da mulher, ainda marcam fortemente as relações de gênero no meio rural.

Ao tratar de tarefas comuns na divisão do trabalho das famílias rurais, Siliprandi discorre sobre os discursos típicos acerca dos espaços femininos e masculinos na agricultura familiar. Os espaços de “dentro”, femininos, incluiriam as atividades domésticas, limpeza, roupas, cozinha, a responsabilização pelos cuidados com os filhos, os quintais (hortas, pomares) e criações (galinhas, porcos) destinados à alimentação da família, além do cuidado com as demais criações (cachorros, gatos). Os espaços de “fora” são aqueles tidos como tipicamente masculinos: as lavouras e criações animais voltadas à produção comercial, bem como as associações e cooperativas, os movimentos sociais, os estabelecimentos de fornecedores e compradores, as instituições de assistência técnica e extensão rural, as instituições financeiras, os bares e as outras atividades de lazer masculinas. No entanto, o trabalho de Siliprandi destaca que, apesar de recorrente, a participação das mulheres nos espaços masculinos, como nas atividades comerciais de plantio e criação agropecuária junto aos companheiros e filhos, é comumente reduzida à percepção de “ajuda”.

Assentamento Dandara: o trabalho "leve" das mulheres (foto retirada do livro)

Tal divisão, somada à organização do poder no interior da agricultura familiar, conduz a duas importantes constatações a partir do trabalho de Siliprandi. A primeira revela como atividades masculinas são aquelas que, por se reverterem diretamente em produtividade acumulada passível de comercialização e em valores econômicos, terminam por ganhar destaque nas discussões acerca do papel da agricultura familiar no desenvolvimento rural, em detrimento da invisibilidade das atividades realizada pelas mulheres.

A segunda relaciona-se à dominação masculina nos processos decisórios acerca dos investimentos, uso das áreas de produção agropecuária e distribuição das rendas geradas, que torna arriscado concluir serem coletivas as estratégias de reprodução social da agricultura familiar. Isto porque, na medida em que cabe aos homens tais decisões, os projetos individuais das mulheres podem ou não ser viabilizados. Inclusive, como apontado nos casos relatados em Mulheres e Agroecologia, esta é uma das principais razões que conduz mulheres organizadas a implantar suas hortas comunitárias e buscar rendas em atividades fora da propriedade.

O resgate de Siliprandi coloca assim novas indagações sobre as razões de resistência da agricultura familiar. Hooks (1990), ao resgatar a centralidade das mulheres negras norteamericanas na consolidação de laços familiares e da casa como um espaço de valorização de suas identidades e de seus familiares, destaca seu papel fundamental na estruturação dos movimentos pela libertação e direitos civis negros nos Estados Unidos. A casa seria assim um espaço de resistência criado por estas mulheres que não apenas viabilizou o fortalecimento destes movimentos, mas também inaugurou os caminhos para as pautas futuras das mulheres negras estadunidenses. Este espaço, no entanto, se constituiu condicionado a jornadas de trabalhos extenuantes, a pagamentos ínfimos, ao racismo e à dominação masculina.

A resistência da agricultura familiar aos avanços do Agronegócio poderá, a partir do trabalho de Siliprandi, ter sua análise também fundamentada no papel das mulheres. Mulheres e Agroecologia mostra os caminhos e oferece as ferramentas: as mulheres são a principais responsáveis pelas estratégias de segurança alimentar da família; são elas as que detém o conhecimento sobre plantas medicinais e assim também responsáveis pela saúde de filhos e maridos; são as protagonistas na conservação de sementes e na preservação dos recursos naturais; são as principais responsáveis pelas condições de moradia. Aos que se interessam pelo tema, a leitura do livro de Emma Siliprandi tem o poder de suscitar a seguinte reflexão: seriam elas a própria resistência?

O livro também apresenta um resgate do feminismo como movimento social e teoria crítica. Após a apresentação das correntes do movimento feminista, são descritas a trajetórias das mulheres que dão corpo ao livro. Sem que a autora ofereça respostas, a maneira que escolhe organizar as informações levantadas instiga a reflexão crítica de certos discursos, que associam, por exemplo, naturezas femininas aos cuidados com a vida, com a terra, as sementes e o alimento emerge. Este é um discurso, inclusive, colocado por algumas das mulheres entrevistadas. No entanto, as narrativas de suas próprias trajetórias são exatamente o que podem causar maior estranhamento ao leitor, pois são permeadas por estratégias claramente racionalizadas, moldadas cultural, social e materialmente.

O estranhamento é apaziguado, no entanto, exatamente porque os discursos das treze mulheres por vezes se encontram e distanciam. Nesse sentido, Moore (2000) propõe que as identidades dos sujeitos são construções, não sendo necessariamente vividas da mesma maneira e, por esta razão, suas posições podem ser aparentemente contraditórias. As falas coincidem, com mais força, na infância na roça, nos enfrentamentos em espaços públicos de dominação masculina, nos dilemas diante do que fazer com os filhos para participar dos espaços de seus movimentos sociais. Se distanciam, porém, quando elas passam a se definir e discorrer sobre o que significaria “ser mulher”.

As Mulheres de Siliprandi participam de ocupações de terras, são importantes sindicalistas, lideranças dos maiores movimentos sociais latino americanos, quebradeiras de coco, quilombolas, ribeirinhas, extensionistas rurais, mães, filhas, avós, esposas, negras, brancas, indígenas e trabalhadoras. Todavia, para compreender as suas tantas vozes não podemos esperar que falem em uníssono, porque por muito tempo estiveram caladas.

Para baixar o livro completo, acesse:

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRAH, Avtar. (2006). "Diferença, diversidade, diferenciação". Cadernos Pagu, Campinas, n 26, pp- 329-376.

HOOKS, bell. (1990). "Home Place (site of resistance)". In: Race, gender and cultural politics. Boston: South End Press.

MOORE, H. L. (2000). "Fantasias de poder e fantasias de identidade: gênero, raça e violência". Cadernos Pagu (14).

SILIPRANDI, Emma. (2015). Mulheres e agroecologia: transformando o campo, as florestas e as pessoas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

Carolina Rios Thomson é cientista social (UFRJ), mestra em Agroecologia e Desenvolvimento Rural (UFSCar) e Doutoranda em Ciências Sociais (UNICAMP). Atua como professora, pesquisadora e é vice-presidente do Instituto IBÁ de Agroecologia. Recentemente, tornou-se também produtora de leite no centro-oeste mineiro. Hoje em dia, vive no trecho Minas-São Paulo e nos dilemas entre a teoria e a prática.

Contato: riosthomsoncarolina@gmail.com

 

Editora responsável: Luna Ribeiro Campos

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