CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES VERSUS CHOQUE DE CULTURA
Samuel, escuta o que você está falando
Achou que eu não iria falar de Samuel Huntington? Achou errado, otário! Huntington foi um cientista político estadunidense que se tornou mundialmente conhecido a partir da publicização da sua teoria do “choque de civilizações”, nos anos 1990. Tal teoria, grosso modo, afirmava que, após o fim da Guerra Fria, os antagonismos do sistema internacional não seriam mais estabelecidos sobre questões econômicas ou ideológicas, mas sim sobre as divisões culturais. Sendo assim, os principais conflitos globais seriam fruto dos choques entre países e grupos oriundos de civilizações distintas.
A tese do choque de civilizações não surgiu do nada. Ela foi produzida, notadamente, como uma contraposição às ideias multiculturalistas. Huntington compreende que culturas distintas tendem a se relacionar através do conflito e oferece centralidade a um hipotético embate entre o Ocidente e o Islã. Não por acaso, após os atentados de 11 de setembro de 2001, a tese do choque de civilizações foi revigorada e mobilizada enquanto instrumento de legitimação política por grupos xenófobos, nos EUA e na Europa.
Hoje em dia, com o aumento dos fluxos migratórios das periferias rumo aos centros, o debate ganha mais alguns elementos impulsionadores: a cada vez, por exemplo, que os subúrbios não brancos de Paris se levantam, uma cultura supostamente violenta dos muçulmanos é insinuada; quando um latino-americano entra em território estadunidense sem documentação, por sua vez, a pobreza que vivencia é frequentemente apontada como fruto da preguiça. Trata-se de um essencialismo que imputa a sociedades heterogêneas generalizações desprovidas de bases reais.
A proposta de Huntington começa pecando na escolha e utilização das categorias. O cientista político coloca cultura, identidade e civilização em um mesmo saco, apontando uma relação direta entre esses elementos, algo que acadêmicos mais cuidadosos evitariam. Ademais, ainda que existissem civilizações reduzidas a um determinado compartilhamento cultural, a proposta de Huntington seguiria pecando ao compreender identidades de maneira essencializada, com características que sobrevivem ao tempo e às mudanças políticas, econômicas e sociais. Por último, a deficiência que é mais flagrante: é uma teoria fundamentalmente racista, uma teoria da inferiorização e demonização do outro. O que estrutura o pensamento do autor estadunidense é a crença de que o Ocidente (leia-se EUA e Europa ocidental) chegou em um ponto de desenvolvimento cultural que não só é inalcançável para as outras civilizações, como é ameaçado por elas.
Choque de Cultura é diversidade
Choque de Cultura é um programa de humor nonsense apresentado pela primeira vez ao público em 2016. A esculhambação, o absurdo, a grosseria e a sutileza, misturados a inúmeras referências da cultura pop, conquistaram milhares de seguidores Brasil afora. As frases proferidas pelos personagens encenados pelos quatro atores e roteiristas tomaram as ruas e são motivo de brincadeiras nas mais diversas rodas de amigos. Sem dúvida nenhuma, o programa é um sucesso.
Duas são as especificidades do Choque de Cultura: ser um programa inteiramente exibido na internet e não sobreviver da ridicularização de grupos sociais oprimidos. Sobre a primeira especificidade é evidente que o advento e a popularização da internet é uma revolução em andamento e que os seus efeitos na comunicação e na cultura são inúmeros e potentes. Já quanto à recusa ao humor preconceituoso, não há muito o que dizer. O Choque de Cultura não é baluarte do humor bem comportado, de esquerda ou do politicamente correto. É só humor sem babaquice.
Dentro de um cenário nacional onde o humor é, em grande medida, alimentado pela inferiorização da mulher, estereotipação da pobreza e reprodução da homofobia, os jovens do Choque de Cultura fazem justiça a uma geração que colocou questões como machismo, racismo e diversidade sexual na pauta do dia. Mais do que isso: em um episódio, Rogerinho do Ingá, o apresentador, afirma que “Choque de Cultura é diversidade e quem pensar diferente vai entrar na porrada”. Alguns podem crer que a citada frase é uma afirmação autoritária, no entanto, ela nada mais é do que a afirmação da violência como último e legítimo artifício da irredutível defesa da diversidade, portanto, uma violência contra-autoritária.
Recado final
Contra a visão segregacionista de Huntington, defendemos o hibridismo de Rogerinho, Maurilio, Julinho e Renam. Contra a ideia dos diferentes em necessário conflito, defendemos a diversidade em convívio, mesmo que para isso seja preciso entrar na porrada. Contra a crença nas culturas que se chocam, defendemos o Choque de Cultura. Afinal de contas, dentro do transporte alternativo, todo mundo é igual.
Rafael Rezende é editor associado da Horizontes ao Sul. Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenador adjunto do Núcleo de Estudos de Teoria Social e América Latina (NETSAL).
Editora responsável: Marcia Rangel Candido