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  • Marcia Rangel Candido

PIONEIRAS DA SOCIOLOGIA: UM ESTUDO CLÁSSICO DE MARIA SYLVIA DE CARVALHO FRANCO


No ano que vem, 2019, completam-se cinquenta anos da publicação de Homens livres na ordem escravocrata, livro clássico de Maria Sylvia de Carvalho Franco. Mas... seria mesmo um clássico? Não é incomum encontrar essa designação ao livro, prestando reconhecimento a sua grandeza, ainda que ele não costume figurar no rol das “interpretações do Brasil”[1] mais famosas. Ao longo dos anos em que pesquisei a obra da autora, durante a graduação e mestrado, a reação dos meus colegas estudantes de Ciências Sociais era mais o desconhecimento do que a familiaridade. Nas disciplinas de “sociologia brasileira” que ainda se mantém nos currículos dos cursos de graduação, a presença do livro não chega a ser frequente. Porém, ao contrário de muitas obras das Ciências Sociais brasileiras que só são visitadas pelos ratos de bibliotecas, o livro de Maria Sylvia teve quatro diferentes edições ao longo do tempo[2], e até recentemente não era difícil encontrar alguma reimpressão nas livrarias.

Maria Sylvia de Carvalho Franco nasceu em 1930, em uma família tradicional da elite paulista. Entrou na Universidade de São Paulo em 1949, ingressando no curso de bacharelado em Ciências Sociais no qual se formou em 1952. Franco participa, primeiramente como aluna, depois como pesquisadora e professora assistente, da Cadeira I de sociologia, integrando o grupo de pesquisadores sob a orientação de Florestan Fernandes, durante as décadas de 1950-60, entre os quais podem ser destacados Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni. Ligada a esse grupo a autora publicou seus primeiros artigos, no final da década de 1950 e início dos anos 1960, e construiu sua pesquisa de doutoramento intitulada Homens Livres na Velha Civilização do Café, tese defendida em 1964 que se tornaria cinco anos depois o livro Homens Livres na Ordem Escravocrata (1969).

Após a reforma universitária de 1968, Maria Sylvia manteve-se trabalhando no departamento de Ciências Sociais da USP até 1970 – ano em que defende sua tese de livre-docência intitulada O Moderno e suas diferenças – quando, em meio ao turbulento ambiente universitário sob intervenção e repressão da ditadura militar, se transfere para o Departamento de Filosofia da FFLCH/USP. Durante as décadas de 1970 e 80 a autora continuou lecionando, pesquisando e orientando trabalhos na Filosofia da USP, se transferindo para a Unicamp no final dos anos 1980, onde trabalhou até se aposentar.

Se entendermos que clássico é todo livro que continua a interessar novas gerações por que sentem que ele ainda tem algo a dizer, acredito que a deferência seja mais do que justa. A recente retomada de estudos sobre sua obra também aponta nesse sentido. O ponto de partida do livro é colocado por uma angulação crítica que fez barulho nos anos 1960/70: a crítica ao dualismo. Questão complexa que atravessaria o debate teórico das esquerdas, costumamos entender como “dualistas” as perspectivas de análise que não conseguem pensar a articulação entre aquilo que aparece como antitético e incompatível (por exemplo, a escravidão nas Américas e a ordem liberal das revoluções burguesas europeias) mas que na realidade está se determinando reciprocamente.

No caso em questão, tratava-se de buscar entender o Brasil sem fraturá-lo nas dualidades “Brasil legal” x “Brasil real”, feudalismo x capitalismo, tradição x modernidade, etc, como se o pobre/rural/arcaico não tivesse nada a ver com o industrial/urbano/moderno. Problematizando os próprios termos dessa oposição, a autora desafiava tanto as leituras “ortodoxas” do marxismo etapista, quanto da sociologia da modernização hegemônica nas Ciências Sociais da época. Ambas perspectivas acabariam generalizando a sequência histórica particular dos países “centrais” como esquemas supostamente “universais” de mudança social. Aqui podemos encontrar uma crítica ao que hoje chamaríamos de eurocentrismo da teoria sociológica, tema e debate bem quente da atualidade para o qual, aliás, a contribuição de Maria Sylvia de Carvalho Franco, bem como de muitos outros autores e autoras latino-americanas daquele contexto, merece ser melhor discutida e avaliada.

Em Homens livres na ordem escravocrata a tentativa de escapar das visões dualistas parte de um duplo movimento: por um lado, a recusa em tomar a sociedade brasileira como “tradicional”, por outro, a inscrição da formação brasileira dentro do processo mais amplo de formação (global) do capitalismo. Somente com esse duplo movimento poderíamos recuperar a historicidade própria da nossa formação, que não deveria ser vista como “uma reedição de formas antigas de organização social, ou como uma manifestação ligada aos últimos alentos do mundo medieval”, mas sim “como um momento entrosado no processo que inaugura o modo de ser moderno das sociedades ocidentais” (1964, p.2). A formação brasileira já mostraria, desde a colônia, uma forma de organização social orientada para a produção de mercadorias em larga escala, de modo regular e barato, visando o lucro crescente.

Esse ponto de partida se apoia, a meu ver, em duas obras centrais das ciências sociais latino-americana da primeira metade do século XX: Capitalismo e Escravidão (1944) do caribenho Eric Williams, e Formação do Brasil Contemporâneo (1942) de Caio Prado Jr. Ambas, em diálogo com o marxismo, apontavam para a necessidade de compreender a reedição da escravidão moderna como determinada fundamentalmente pelo nexo econômico capitalista que organizou a exploração da mão-de-obra na plantation exportadora. Começava a viravolta que o pensamento crítico brasileiro e latino-americano soube aproveitar em diferentes direções[3], pela qual os signos do nosso aparente “atraso” sustentavam a ponta mais “moderna” do desenvolvimento capitalista.

Porém, não foi sobre a articulação entre escravidão e capitalismo que a pesquisa empírica de Franco se debruçou[4], mas sobre as relações de “favor” entre os homens livres na “velha civilização do café”, cujas relações sociais ao mesmo tempo pressupunham e se diferenciavam daquelas entre senhores e escravos. Sua análise das formas de dominação que se produziram entre fazendeiros e homens livres pobres no Vale do Paraíba do século XIX busca mostrar que elas não poderiam ser descritas como “estamentais” e “patrimonialistas”. Isso porque já se constituíram em um mundo voltado para a atividade econômica capitalista, na qual esses homens livres pobres eram desnecessários (dado que ela recaia nos braços dos escravizados). Assim, as associações morais (compadrio, lealdade, reconhecimento) que uniam o “coronel” e seus dependentes eram frágeis e extremamente assimétricas, para benefício da parte dominante. A “dominação pessoal”, por conseguinte, tanto advinha de uma sociedade menos diferenciada do que a europeia (diminuindo as distâncias entre os “estilos de vida”), quanto era menos baseada na reciprocidade e no “dever” do senhor de respeitar seus dependentes, inviabilizando a estabilização de uma “tradição” bem assentada.

Essa descrição sintética do argumento central não dá conta das minúcias através das quais a análise vai se desenrolando ao longo do livro. Partindo da investigação das relações dos homens livres pobres entre si, no primeiro capítulo a autora mostra como a violência e o conflito estavam presentes na vida comunitária, indicando um código moral (o “código do sertão”) baseado na valentia e na honra pessoal. O segundo capítulo mostra o tipo-ideal da dominação pessoal através de uma análise diferenciada das diversas posições sociais que os homens livres pobres podiam ocupar naquela sociedade (“tropeiros”, “vendeiros”, “sitiantes”, “agregados” e “camaradas”), o que alterava o seu grau de dependência em relação aos fazendeiros. No terceiro capítulo, a autora procura mostrar como essas relações de dominação pessoal se desdobraram na construção do Estado nacional e na vida política – onde está em debate com as noções de “clientelismo” e “mandonismo” (Botelho, 2007). Em seguida, no quarto e último capítulo busca mostrar como essa ordem pessoalizada se integrou com o mercado capitalista, na medida em que as relações entre fazendeiros e comissários de café (responsáveis pelo transporte e venda do produto nas cidades), prescindindo de segurança jurídica que garantisse a estabilidade dos contratos, se apoiaram nas relações pessoais que ligaram uns aos outros.

O arco montado pelo argumento do livro, saindo das relações comunitárias e chegando até o mercado capitalista, também busca mostrar como o processo histórico específico da região “resolve” localmente as determinações mais gerais do capitalismo. Valorizando a sequência histórica particular analisada, ela mostra como a relativa indiferenciação social advinda do passado de pobreza generalizada da região paulista se conectou positivamente com a formação de um “homo economicus tosco” (Franco, 1969, p. 204)[5]. Assim, analisando os processos sociais do ponto de vista em que foram vividos pelos atores envolvidos, a autora mostra como dominação burguesa e dominação pessoal se fundiram na conduta do fazendeiro, que se beneficiou do poder quase ilimitado para a violência de uma acumulação capitalista baseada no regime escravista. Ou seja, ao invés de corroborar o caráter supostamente “progressista” do desenvolvimento capitalista, a autora buscava mostrar como o capitalismo não é nada incompatível com a violência da dominação pessoal. Pelo contrário, só conseguimos entender as formas de dominação política pessoalizadas se conectarmos nossa formação com a constituição do capitalismo como sistema mundial.

É difícil definir o lugar que a obra de Maria Sylvia de Carvalho Franco ocupa hoje nas Ciências Sociais. Por um lado, a especialização excessiva afastou as pesquisas atuais do interesse pelos grandes “ensaios de interpretação do país”, fazendo destes o objeto de uma nova especialidade (o “pensamento social brasileiro”). Por outro lado, pelo tom polêmico através do qual sempre enfeixou seus argumentos, pela crítica aguda às perspectivas sociológicas hegemônicas, pela trajetória acadêmica que vai da sociologia para a filosofia[6], pela quantidade enxuta de publicações ao longo das décadas, entre outros fatores, o legado intelectual de Franco parece pouco disputado dentro das ciências sociais. É como se o viés crítico acentuado tivesse feito com que a autora não se acomodasse em nenhuma tradição intelectual. Seu lugar dentro da “escola sociológica paulista” continua um ponto controverso. Além disso, faltam ainda pesquisas que busquem relacionar sua trajetória às hierarquias e clivagens de gênero dentro do ambiente universitário. Que o aniversário de cinquenta anos do seu clássico seja um incentivo a novas leituras e redescobertas de sua produção acadêmica tão instigante e provocadora.

Obras indicadas de Maria Sylvia de Carvalho Franco:

Homens livres na ordem escravocrata. (1997). São Paulo: Ed. UNESP.

O Moderno e Suas Diferenças. (1970). Tese de Livre-Docência. Departamento de Ciências Sociais/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

“Sobre o conceito de tradição”. (1972). Cadernos CERU (Centro de Estudos Rurais e Urbanos), nº5. 1ªSérie.

“As idéias estão no lugar”. (1976). Cadernos de Debates, n.1. São Paulo: Brasiliense.

NOTAS

[1] Fazemos essa afirmação tomando as coletâneas Introdução ao Brasil: um banquete nos trópicos (2002), Um enigma chamado Brasil (2009), Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados (2014).

[2] As edições foram: Instituto de Estudos Brasileiros, 1969; Ed. Ática 1974 (Coleção Ensaios); Ed. Kairós, 1983; Ed. Unesp, 1997.

[3] Para citar alguns exemplos, a obra de Roberto Schwarz no âmbito da crítica literária e cultural é um dos resultados desse processo de acumulação intelectual, bem como a perspectiva historiográfica de Luis Felipe de Alencastro ou as diversas correntes da teoria da dependência.

[4] Vale lembrar que Franco participava da cadeira de Sociologia I da USP e do grupo de pesquisadores sob orientação de Florestan Fernandes, junto com Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni, que também estudavam a relação entre escravidão e capitalismo, e com quem a autora polemizou tanto na introdução da tese de 1964 como em artigos posteriores das décadas de 1970 e 80 (ver Cazes, 2013, cap.1).

[5] Pra uma análise mais detalhada desse ponto, ver Cazes, 2014.

[6] No contexto turbulento dos primeiros anos da ditadura militar, em meio a cassações e aposentadorias compulsórias, Franco vai do Departamento de Sociologia para o de Filosofia da USP, onde se mantém lecionando e orientando pesquisas até o final dos anos 1980.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOTELHO, André. (2007), "Seqüências de uma sociologia política brasileira". DADOS - Revista de Ciências Sociais, vol.50, n.1.

_______. (2013), "Teoria e história na sociologia brasileira: a crítica de Maria Sylvia de Carvalho Franco". Lua Nova, São Paulo, n.90, p.331-366.

CAZES, Pedro. (2013), A sociologia histórica de Maria Sylvia de Carvalho Franco: pessoalização, capitalismo e processo social. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

_________. (2014), "Passagens para o capitalismo: a sociologia histórica de Maria Sylvia de Carvalho Franco". Crítica e Sociedade: revista de cultura política, v.4, n.2, p.113-138.

FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. (1964), Homens livres na velha civilização do café. Tese de Doutorado. Departamento de Ciências Sociais/FFLCH, Universidade de São Paulo.

_____. (1969), Homens Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros.

HOELZ, M. (2010), Homens livres, mundo privado: violência e pessoalização numa sequência sociológica. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de pós-graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ). Rio de Janeiro.

MALAGUTI, P. (2013), A sociologia de Maria Sylvia de Carvalho Franco e os “estudos de comunidade” no Brasil. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ), Universidade Federal do Rio de Janeiro.

SANTANA, F. A. (2014), Teoria sociológica e realidade brasileira: possibilidades de produção de conhecimento teórico a partir de dois debates da sociologia brasileira. Dissertação de Mestrado, UNIFESP, Guarulhos.

Pedro Cazes é professor do Departamento de Sociologia do Colégio Pedro II e doutorando em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ).

Em 2013, defendeu sua dissertação de mestrado sobre a obra de Maria Sylvia de Carvalho Franco no PPGSA/UFRJ.

Contato: pedrocazes@yahoo.com.br

 

Editora responsável: Luna Ribeiro Campos

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