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  • Marcia Rangel Candido

REBELIÃO E REVOLUÇÃO: NISE DA SILVEIRA E OS DESTINOS DA SAÚDE MENTAL NO BRASIL


Dra. Nise participando de uma instalação em Santa Teresa. 1970. Foto: Martha Pires.

A psiquiatra alagoana Nise Magalhães da Silveira faleceu no Rio de Janeiro em 1999, quase centenária, por conta de uma insuficiência respiratória aguda. Seu calvário se acumulava desde a década anterior, quando um acidente doméstico a deixara em cadeira de rodas. Durante todo esse período, porém, foi acompanhada de perto por uma pequena e sólida rede de amigos e colaboradores, graças à qual aliviou sua passagem para as outras galáxias (como ela mesma chegou a dizer em seu leito derradeiro).

Muitos desses eram jovens estudantes, frequentadores do grupo de estudos aberto ao público mantido pela médica em sua própria residência, no bairro do Flamengo. Outros concentravam suas atividades nas instituições fundadas pela mestra, como o Museu de Imagens do Inconsciente, no Engenho de Dentro, e a Casa das Palmeiras, em Botafogo.

Ao contrário de seus pares no campo médico-psicológico, Nise da Silveira não constituiu um movimento organizado. Suas atividades educativas não forneciam certificação oficial e tampouco exigiam formação de seu público, que variava sua composição entre hippies, astrólogo/as, artistas, jornalistas, psicanalistas, donas de casa, político/s, desempregado/as e egresso/as de internações psiquiátricas. Seu trabalho terapêutico, por sua vez, não residia na clínica individual de consultório, mas sim na terapêutica ocupacional no interior da estrutura manicomial. Essas particularidades a colocam em um lugar sui generis na história da psicologização brasileira. Ao contrário de uma escola ou doutrina, o que se engendrou foi uma trama de pessoas, instituições e materialidades em torno de sua vida e obra, a qual persiste até os dias de hoje, mesmo depois de sua morte.

O presente século – e, em particular, a última década – é marco de um crescente processo de construção da memória da trajetória e dos ensinamentos de Nise da Silveira. Aquela que foi a única mulher formada em medicina em uma turma de 158 homens na década de 1920, na célebre Faculdade de Medicina da Bahia. Aquela que, já no Rio de Janeiro, foi presa e perseguida durante o Estado Novo, sob a acusação de comunismo. Aquela que voltou do exílio e enfrentou os violentos métodos de tratamento vigentes na psiquiatria brasileira (eletrochoque, lobotomia, coma insulínico) no antigo Centro Psiquiátrico Nacional da zona norte carioca. Aquela que deu aos loucos abandonados no asilo a possibilidade de expressão através da tinta, do barro e do pincel, décadas antes da reforma psiquiátrica brasileira. Aquela que conheceu de perto Carl Gustav Jung, em Zurique.

Todas essas cenas, extraídas da longa e densa biografia da psiquiatra alagoana, ressurgem nos dias atuais através de múltiplas mídias: livros, filmes, peças de teatro, reportagens, teses acadêmicas, políticas públicas... Tal como os espectros de Marx, os espectros de Nise se propagam sem cessar, não se encerrando nos limites do passado, nem na unidade de um indivíduo. A riqueza de sua luta se desdobra em um território móvel de avivamento, no qual se apresentam muitas Nises, contínuas ou descontínuas.

Entre essas representações (ou presentificações?), é comum a referência ao caráter revolucionário do itinerário da psiquiatra. Em uma rápida busca em periódicos e jornais, encontra-se manchetes como “Quem foi Nise da Silveira, a mulher que revolucionou o tratamento da loucura no Brasil”; “Gloria Pires interpreta a mulher que revolucionou a psiquiatria no Brasil em Nise — O Coração da Loucura”; “Revolução silenciosa” etc. A repetição dessas figuras leva a crer que as propostas da médica teriam ganhado pleno reconhecimento, sendo incorporadas amplamente em todos os campos sobre os quais estendeu sua influência. Não obstante, entre admitir que um indivíduo ou grupo é imbuído de uma inclinação à transformação social e assumir que essa transformação tenha se sedimentado, de fato, na condição de uma ruptura radical, há uma grande diferença.

Ora, quais foram efetivamente as propostas médico-científicas de Nise da Silveira? A psiquiatra, avançando nas sugestões do alemão Eugen Bleuler, sustentava que as ditas doenças mentais (em especial a esquizofrenia, anteriormente conhecida sob o signo irreversível da demência precoce) não eram necessariamente resultado de lesões cerebrais. Sua etiologia, diversamente, se radicava em uma cisão de si de caráter psicológico. Nesse sentido, a originalidade da tese niseana residia na afirmação de que a ruptura psíquica não implicava na decadência das faculdades afetivas.

Sua comprovação empírica era extraída da experiência diária no hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro. Neste, Nise lidava diretamente com internos de longa data, que se engajavam em atividades de expressão plástica e na convivência com monitores, animais e plantas. Através da observação desse setting terapêutico, ela verificou que a capacidade de afetar e ser afetado permanecia pulsante, mesmo em sujeitos acometidos por psicoses graves. Dita capacidade, caso acionada em um ambiente de tratamento adequado – preferencialmente focado no nível não verbal, imagético, da experiência humana, envolvendo também materiais e seres vivos não-humanos, como cães e gatos – poderia produzir efeitos de cura. Era o que chamava de afeto catalisador. Seria possível, assim, reconstruir a ruína esquizofrênica e reestabelecer a comunicação com o mundo externo.

Minha pesquisa de doutorado em antropologia social demonstrou como os conceitos e métodos que se delinearam ao longo da trajetória de Nise da Silveira – isto é, a genealogia de um saber constituído com e através de suas relações – encontraram grandes dificuldades de aceitação em seu tempo de vida, e continuam sendo alvo de inúmeras resistências nos dias atuais. Repetidos depoimentos de aliados da psiquiatra ou dela própria, registrados em livros, artigos e entrevistas, mencionam essas adversidades, incluindo diversas tentativas de sabotagem e silenciamento, protagonizadas pela classe médica e/ou por agentes estatais. Entraram, nesse escopo, tentativas de fechamento de suas instituições; sua aposentadoria compulsória; a depredação das instalações ocupacionais, como o jardim e o ateliê, que chegou a ser preenchido com leitos de internações; e o lamentável envenenamento dos animais co-terapeutas que participavam da Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação, levando à sua morte, na década de 1970.

Nise da Silveira incomodava, pois abalava toda uma maquinaria que, na comunhão entre a medicina e o Estado, se destinava a classificar e ordenar corpos e populações, estabelecendo entre eles gradações diferenciais de reconhecimento humano. Por onde a psiquiatra passava, os corpos que não importavam tanto (pacientes psiquiátricos, cães, gatos, plantas) passavam a importar e, inversamente, os corpos que tinham reconhecimento político – quais sejam, os Senhores Doutores – passavam a ser desafiados e, através da denúncia da violência intrínseca à prática médica, desumanizados. Seu próprio corpo, feminino, migrante, e ao fim e ao cabo comunista – pois demarcado pela memória de sua prisão e exílio, ainda que ela tivesse se afastado posteriormente das atividades do Partidão – entrava em um jogo que tensionava os limites do humano e a precariedade da vida. Isto se dava através das insurgências inquietantes: da loucura, da animalidade, dos marcadores de gênero e da trajetória política.

Pode-se afirmar que esse incômodo permanece entre aqueles que dão continuidade ao trabalho de Nise da Silveira nos dias atuais. Isto se deve, além da provocadora micropolítica das relações sugerida na prática da psiquiatra, por uma multiplicidade de fatores de ordem histórica. Entre esses, dois podem ser destacados aqui.

O primeiro fator diz respeito à transformação científica da psiquiatria de meados do século XX para cá, a qual incluiu a expansão do mapa de classificações psiquiátricas, concomitantemente à consolidação da psicofarmacologia como modelo terapêutico hegemônico. Essa mudança, que ganhou forma mais nítida a partir da década de 1980, implicou no desprestígio relativo da cosmovisão psicológica e no primado da explicação fisicalista e neurocientífica do comportamento humano, incluindo a proliferação em escala industrial e estatal de práticas médicas pretensamente “justificadas” pelo mesmo.

O segundo fator envolve o simultâneo surgimento da reforma psiquiátrica, consubstanciado no projeto de desinstitucionalização dos manicômios através da criação de serviços substitutivos de atenção psicossocial. Apesar de louvável e aparentemente favorável, esse processo se direcionou a outros referenciais teóricos que não o de Nise da Silveira (por exemplo, a psiquiatria democrática italiana e a psicanálise lacaniana, entre outras linhas de pensamento, em sua maioria europeias), relegando-a à simples condição de “ícone”, ou estabelecendo com sua trajetória uma continuidade muito mais mítica que histórica. Mesmo as atividades expressivas, quando aplicadas pelos dispositivos da reforma no âmbito das políticas públicas, não seguem plenamente as recomendações niseanas (que se definiam pela espontaneidade e pela interdição de venda em favor do estudo científico e psicológico), destinando-se a outros fins tais como a geração de renda, ensino técnico e à superação do signo do “terapêutico” em favor da "cidadania". Acrescente-se, ainda, a incompletude dos próprios ideários da reforma, devido à precária condição do sistema de saúde pública no Brasil, às disputas ideológicas entre associações profissionais, movimentos sociais, usuários e familiares; e ao recente e lamentável "sucesso" de um governo golpista, cujo ministério, sem consulta pública, priorizou a gestão hospitalocêntrica, ferindo os princípios da Lei 10.216/2001.

Em que implica esta configuração biopolítica, que envolve a um só tempo a ciência, o Estado e o mercado? Na marginalização do método niseano. Este termina, na prática concreta da saúde mental, sendo relegado ao estatuto de “alternativo” ou “complementar”, ou sequer sendo seguido, a despeito das nuvens de glória e da beatificação da história de vida da psiquiatra que, como se costuma dizer, teria transformado totalmente a psiquiatria.

Do ponto de vista da resistência, é verdade que persistem políticas públicas hodiernamente desenvolvidas sob a égide do nome da médica. O maior exemplo é o próprio hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro, o antigo Pedro II, rebatizado, desde 2001, Instituto Municipal Nise da Silveira. Este, além do Museu de Imagens do Inconsciente, conta também com novos e velhos projetos, como o o Espaço Aberto ao Tempo, o ponto de cultura Loucura Suburbana, o Centro de Convivência e Cultura Trilhos do Engenho, e o mais recente Hotel da Loucura, transformado em Espaço Travessia depois da controversa exoneração de seu coordenador. Contudo, a pesquisa de campo nesses âmbitos particulares também demonstrou como os mesmos são obrigados a se desenvolver dentro de estruturas precárias e assimétricas, as quais permanecem manicomiais ou que se ancoram, porventura ou não, em altas dosagens de medicamentos, sufocando as oficinas de criatividade.

Como Nise afirmou em O Mundo das Imagens (1992), a suposta “evolução” da psiquiatria durante o segundo pós-guerra constituiu sobremaneira na passagem das camisas de força físicas para as químicas, delineada na aliança entre o aparato estatal e o império das multinacionais farmacêuticas. Com isso, não quis descartar de forma simplória o recurso medicamentoso – até porque, de fato, possibilitou-se com o mesmo a diminuição do tempo de internação –, mas sublinhar que, na prática, este acaba sendo inscrito em relações de poder, as quais se destinam a controlar sintomas, mas não a curá-los. De acordo com a psiquiatra, esse fato se verifica com ainda maior nitidez no frágil sistema dos hospitais públicos brasileiros, sujeito a toda sorte de escassez cotidiana.

Assim, o boom da memória da vida e obra de Nise da Silveira no âmbito cultural não deve implicar na afirmação de sua revolução no campo da saúde mental. Pelo menos não se enxergarmos no termo revolução uma mudança absoluta, tal como já foi descrito a propósito da política ou sobre a quebra de paradigmas na ciência.

Esse apontamento não significa diminuir a importância de seu trabalho. Trata-se, antes, de apontar para uma arena de disputas em constante mutação, na qual seu nome não se sedimenta em um pódio estatuário. Mais que revolucionária, o que seria apropriado dizer é que Nise da Silveira promoveu, isso sim, uma rebelião. Por sinal, era como ela mesma se dizia: uma pessoa rebelde, que se negou a apertar o agressivo botão do eletrochoque.

Pode-se imaginar uma rebelião – e, por extensão, a rebeldia – como um processo de resistência que pulsa e jamais se encerra, mesmo que em condição desfavorável. Para os conformados com uma concepção linear da história, uma rebelião pode parecer inferior a uma revolução ou se intrincar nos meros sentidos de uma reforma. Entretanto, em que consiste a rebelião? É que ela não extrai sua razão de ser do poder de suas constantes, mas da potência de suas variações. Portanto, uma rebelião é nômade; ela pode mudar à medida que se alteram suas conexões; pode fugir, se esconder, sabotar e cortar caminho. Uma rebelião não se esgota em um acontecimento episódico, mas se pulveriza em uma possibilidade de modos de existência no porvir.

E é por isso, por ter promovido uma rebelião, que, em sua vida após a morte, Nise da Silveira não cessa de se multiplicar. O lugar de seus ensinamentos na hierarquia estabelecida dos saberes-poderes não é capaz de bloquear o seu retorno. Pelo contrário, são abertos caminhos para apropriações, contágios e ressignificações de toda sorte, que se infiltram nos escombros e resistem às capturas, nas mãos de carne e osso daqueles que bravamente enfrentam as adversidades do campo da saúde mental no Brasil.

Dessa maneira, diante do diagnóstico ensejado por este texto, valeria a pena procurar compreender quais são as linhas de fuga deixadas pela mestra. Linhas que, é verdade, não estão devidamente estabilizadas em planos nacionais ou em compêndios médicos, na grande política ou na ciência oficial. Mas que, mesmo assim, emergem nas práticas, na contingência dos acontecimentos, nos pequenos provisórios da luta diária, nos agenciamentos, afetos e territórios do serviço público, no inferno de seus papeis e nas frestas de seus muros. É aqui que, com certeza, Nise da Silveira ainda vive, rebelde.

Para saber mais:

MAGALDI, Felipe Sales. A Unidade das Coisas: Nise da Silveira e a genealogia de uma psiquiatria rebelde no Rio de Janeiro, Brasil. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2018.

___________________. Frestas Estreitas: uma etnografia no Museu de Imagens do Inconsciente. Coleção Primeiros Campos. Rio de Janeiro: Autorgrafia, 2018 (no prelo).

___________________. A psique ao encontro da matéria: corpo e pessoa no projeto médico-científico de Nise da Silveira. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 25, p. 69-88, 2018

__________________. Entre o Inconsciente e a Cidadania: arte e loucura na reforma psiquiátrica brasileira a partir de uma etnografia no Museu de Imagens do Inconsciente. Ponto.Urbe (USP), v. 18, p. 2-17, 2016.

Felipe Magaldi é bacharel em Ciências Sociais pelo IFCS/UFRJ, mestre em Antropologia pela UFF e doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ. Atualmente é pós-doutorando no Instituto de Antropología de Córdoba/CONICET. Tem experiência nas áreas de Antropologia Urbana e da Saúde, com ênfase em Saúde Mental e Direitos Humanos.

Contato: femagaldi@gmail.com

 

Editora responsável: Luna Ribeiro Campos

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