23 CONDENAÇÕES POLÍTICAS E A REPRESSÃO A JUNHO DE 2013
No dia 17 de abril último o juiz da 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, Flavio Itabaiana, proferiu sentença[1] no processo em que 23 ativistas, que participaram dos protestos de junho de 2013 e contra a copa do mundo em 2014, foram acusados de compor uma associação criminosa e envolver menores de idade nesta associação (acusação de corrupção de menores).
Nos dias que seguiram à divulgação da decisão, entidades da sociedade civil, movimentos sociais, partidos de esquerda, intelectuais e juristas manifestaram seu repúdio ao que pode ser caracterizado inequivocamente como um processo político, destinado a criminalizar os movimentos populares e cercear o direito à manifestação e ao protesto cidadão.
Além da denúncia do caráter político do processo e da reivindicação por justiça, na expectativa de que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reforme a decisão de primeira instância, é preciso tentar compreender o que o processo contra os 23 ativistas envolve em termos de resposta do Estado e das forças reacionárias da sociedade brasileira aos protestos de junho. Junho de 2013 é indiscutivelmente um ponto de virada da política brasileira. Por mais que se divirja muito sobre os significados dos protestos, é inegável que o Estado atuou com todo seu aparato repressivo para dispersá-los e, nesta ação, foram cometidas violações de direitos humanos que apontaram para uma tentativa de lidar com as novidades trazidas pelas manifestações.
Em primeiro lugar, a importância das novas tecnologias de comunicação para o impulso inicial dos protestos foi o que motivou o início da ação repressiva do Estado. O processo dos 23 tem seu começo formal em julho de 2013, com uma investigação da Delegacia de Repressão de Crimes de Informática (DRCI), então comandada por Alessandro Thiers – delegado afastado em 2016 desta função por não proceder à investigação de um estupro de vulnerável registrado em vídeo[2] – sobre a suposta organização dos atos violentos nas manifestações pelas redes sociais. Com autorização do juiz Itabaiana, a polícia civil consegue mandados genéricos, em decisões sucessivas, para quebrar o sigilo de perfis no facebook, identificar seus titulares criminalmente, realizar detenções para identificação de manifestantes que supostamente realizaram atos de violência em manifestações e apreender materiais que com eles se encontrassem.
Os amplos poderes concedidos pelo juiz para que a polícia devassasse as comunicações eletrônicas, em especial as redes sociais, não alcançam o resultado esperado pelo governo e pela mídia. No Rio de Janeiro, os protestos continuam, e na virada de 2013 para 2014 se aproximam cada vez mais da “copa das copas”. Os agentes do Estado simplesmente não conseguem apontar os “líderes” do protestos e quem está por trás da organização dos atos, talvez justamente porque estas manifestações apresentam uma novidade qualitativa em relação a outras mobilizações: sindicatos, partidos, movimentos sociais, líderes religiosos, empresários, mídia corporativa, nenhum destes atores tradicionais na política brasileira tiveram qualquer papel na mobilização inicial das jornadas de junho e, ao menos no Rio de Janeiro, dos protestos que seguiram. Junho de 2013 foi de fato um momento de extrema horizontalidade na mobilização política.
Também não surtem os efeitos esperados as dezenas de prisões realizadas “no atacado” durante as manifestações. Para criar responsáveis pela mobilização popular e criminalizá-los, a repressão política pela polícia passou então a uma segunda tática: combinando a narrativa midiática de que os “black blocks” eram um grupo liderado pela ativista conhecida como Sininho, em especial após a matéria da revista Veja em fevereiro de 2014, e o depoimento de um ex-integrante da Frente Independente Popular (FIP) que delata os ativistas, surgem os nomes dos 23, o vínculo entre eles, a sua suposta organização e suas atividades.
Os elementos probatórios que embasam a condenação constituem uma peça ficcional, criada com ajuda da mídia corporativa e do depoimento de um ex-ativista que havia sido expulso da FIP por denúncias de machismo. Para além destes elementos, a polícia só consegue provar que os ativistas eram militantes que participavam de reuniões. No mais, reúne-se no mesmo grupo pessoas que sequer se conheciam, e sobre algumas delas sequer havia prova efetiva de que participaram de protestos.
Nenhuma destas fragilidades jurídicas do processo como um todo deixa de transparecer na sentença. Para além de sua debilidade técnica, outro aspecto fica bastante evidente: as condenações são feitas com base numa análise da personalidade dos acusados, explicitamente política. Para o juiz Itabaiana, os réus mereceram penas exemplares e elevadas por seu “desrespeito aos poderes constituídos”. Haveria então um dever de respeito a estes poderes que se coloca acima de qualquer outro direito dos ativistas, inclusive de manifestar-se contra abusos e desvios destes mesmos poderes.
Em suas declarações públicas, muitos dos ativistas agora condenados têm chamado atenção para o fato de que a crise financeira e social do Estado do Rio de Janeiro, bem como a prisão do ex-Gorvenador Sérgio Cabral, são provas da justeza e precisão das reivindicações populares de 2013. O próprio sistema de justiça reconhece hoje as ações criminosas que as ruas denunciavam então.
Mas a condenação dos 23 ativistas mostra um outro lado do sistema de justiça, extremamente elitista e demofóbico, bem representado pela sentença do titular da 27ª Vara Criminal, mas também por outros processos como a do catador de latinhas Rafael Braga Vieira, condenado por posse de artefato explosivo por ter sido encontrado nas ruas com uma garrafa de desinfetante. No seu conjunto, a resposta repressiva do Estado a 2013 foi a lembrança de um recado antigo para os movimentos populares: não queiram mudar as coisas, e se quiserem o façam dentro dos limites estreitos que o sistema autoriza. Qualquer questionamento destes limites será duramente punido, ainda que o conteúdo das reivindicações seja a própria ausência de mecanismos para expressão da indignação popular.
Novos fatos envolvendo a espionagem eletrônica dos movimentos sociais foram reveladas esta semana, quando membros do DDH, organização de advogados e advogadas defensorxs dos Direitos Humanos, revelaram que diversas organizações vinham sendo monitoradas por um “inquérito secreto” da polícia. O legado repressivo de junho de 2013 reside numa combinação de novas tecnologias com uma nova legislação – Lei Anti-terrorismo e Lei das Organizações Criminosas – aprovada durante o mandato de Dilma Rouseff, do PT, seletivamente aplicadas sobre os movimentos que podem ameaçar o status quo. Basta ver como se comportou a repressão estatal nos protestos de 2015 pelo impeachment: nenhuma quebra de sigilo das comunicações, nenhuma construção de lideranças, nenhuma prisão decretada apesar de seu “desrespeito ao poder constituído” da presidente.
Hoje, mais do que nunca, vale lembrar que lutar por justiça social não é e nunca será crime, apesar de todas as tentativas para silenciar os movimentos populares. Espera-se que o Tribunal de Justiça reconheça a perseguição sofrida pelos ativistas e desfaça as arbitrariedades cometidas pelo juiz Itabaiana. Enquanto o julgamento dos recursos estiver pendente, precisamos seguir denunciando as violações dos direitos humanos da população fluminense e dos que têm a personalidade íntegra para desrespeitar os poderosos e seus desmandos.
[1] Para acessar a sentença da 27ª Vara Criminal xs leitorxs podem acessar a consulta processual pelo número 0229018-26.2013.8.19.0001 no site do TJ-RJ (www.tjrj.jus.br).
[2]Confiram a notícia de sua dispensa da titularidade da DRCI em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/delegado-afastado-de-caso-de-estupro-dispensado-do-cargo-19461382.html
Alexandre Pinto Mendes é doutor em Direito pela PUC-Rio e Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da UFRRJ, campus Seropédica.
Contato: alexandrepmendes2@gmail.com
Editora responsável: Luna Ribeiro Campos