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  • Marcia Rangel Candido

ARTE E SUSTENTO: OS JOVENS ARTISTAS E SUAS ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA


Créditos da Imagem: O Horizonte. Eloá Carvalho, 2016

O sustento econômico é uma questão frequentemente negligenciada em relação às abordagens sobre profissões artísticas[1]. Embora os meios de comunicação costumem noticiar a alta rentabilidade de parte do mercado das artes, o senso comum do universo artístico costuma preterir os valores das obras, não sendo raros os comentários de que esta atividade não deve ser feita visando lucro, mas sim por paixão. Todavia, como lembra Daniela Stocco, “[...] o segredo faz parte das transações no mundo da arte” e é comum que galeristas, colecionadores e artistas se relacionem em uma complexa rede que envolve a manutenção do sigilo no que tange ao custo das obras (STOCCO, 2016: 85).

A prática cotidiana é permeada pela convenção - ação padronizada dos indivíduos que formam o mundo da arte (BECKER, 2008) - de não falar em dinheiro publicamente. Hábito que, consequentemente, potencializa a noção de “paixão pela arte” e contribui para manter o mistério sobre as formas de sustento dos(as/xs) artistas, sobretudo dos(as/xs) mais jovens[2]. Existe um certo entrave na trajetória dos iniciantes na carreira: ao passo que ainda carecem de expressividade midiática, não conseguem alcançar grandes cifras e, portanto, não se tornam objeto de atenção nos jornais[3]. Como se sustentam, então, os(as/xs) jovens que almejam esse caminho profissional na fase prévia à obtenção de reconhecimento e legitimação?

A paixão, comumente relacionada ao universo da arte e suas práticas, relembra a noção de desinteresse tal como elaborada por Pierre Bourdieu (1996, 2011) em sua teoria dos campos e do capital simbólico. O autor argumenta que cada campo, ao se constituir, produz formas de interesse que a outros campos sociais podem soar como desinteresse, resultando no que Bourdieu chamou de “um genuíno interesse pelo desinteresse”.

A partir da convenção que estabelece o silêncio sobre assuntos financeiros e da noção de interesse pelo desinteresse elaborada na teoria de Bourdieu, argumento que no universo da arte contemporânea a regra é não demonstrar interesse monetário, sendo este mantido como um segredo. É fato que artistas, galeristas e demais profissionais da arte evitam discussões sobre ganhos econômicos e não explicitam interesse no reconhecimento, na consagração ou na fama. Ainda que no mundo da arte haja também um mercado que movimenta altas cifras, tais lucros são vistos como resultado de “esforço”, “dedicação”, “empenho” e “paixão/amor pelo ofício”. Tudo se passa como se na arte o dinheiro não importasse aos artistas (e nem aos outros atores sociais envolvidos). Contudo, a realidade é outra. O comércio de obras de arte via galerias é atualmente essencial ao funcionamento do universo da arte no que diz respeito à comercialização de obras e à construção de carreiras. Não à toa, o Brasil assistiu na última década ao surgimento de importantes feiras de arte nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Em tempos de reformas trabalhistas que podem aumentar a precarização do trabalho em diferentes setores da sociedade brasileira, voltar o olhar para o trabalho dos artistas visuais pode ser elucidativo do que aguarda os inúmeros trabalhadores até então salvaguardados pelas quase sagradas leis trabalhistas, consolidadas na CLT. Atuando como profissionais liberais, em um universo regido por regras que preconizam o desinteresse pelo lucro, artistas visuais têm buscado diferentes estratégias para manter o seu sustento pessoal.

Pude constatar essa hipótese durante a pesquisa que resultou em minha tese de doutorado. Parte de meus materiais de pesquisa foram questionários aplicados a 37 artistas, a partir dos quais foi possível, entre outras coisas, analisar a forma como os/as/xs jovens artistas organizam sua subsistência a realização de seus trabalhos.

O questionário da pesquisa contava com as seguintes questões:

Como você se define profissionalmente? Possui galeria? Caso sim, qual o nome da galeria? A atividade artística é a sua principal fonte de renda? Caso não, exerce outra(s) atividade(s) com essa finalidade (nesse caso, se possível, especifique que atividade(s) exerce)?

Para os fins desse texto, nos interessa sobretudo as respostas referentes às duas últimas perguntas: 29 dos 37 entrevistados responderam que não atuavam apenas enquanto artistas, restando apenas 8 que afirmaram viver somente da venda de seus trabalhos (entre os quais, 2 mulheres e 6 homens). A docência foi a atividade paralela mais comum entre as respostas daqueles que declararam não viver da venda de obras (9 responderam viver da docência em diversos níveis - ensino básico, ensino superior, cursos livres); além disso, um dos(as/xs) artistas atuava como psicólogo e os demais destacaram atividades relacionadas ao cinema (como direção de arte, cenografia e figurino), ao design gráfico, a fotografia, produção musical, assistência para outros(as/xs) artistas, o recebimento de bolsas de incentivo à pesquisa (nos casos de doutorandos e mestrandos), entre outras atividades, formalizadas ou não, exercidas paralelamente à atuação artística.

Vale mencionar a advertência de Izabela Pucu (2017), em “Arte como Trabalho (e Vice-Versa)”, de que a centralidade do trabalho artístico vem desaparecendo e dando lugar a outro tipo de artista que não apenas cria uma obra, mas tem múltiplos afazeres relacionados a sua produção artística. A autora – que também acumula outras funções à de artista – chama a atenção para uma mudança estrutural no entendimento da atividade artística como trabalho, que vai além de uma simples ampliação do “leque de possibilidades de sobrevivência”. Segundo Pucu,

A opção por um vínculo empregatício, por um emprego público, ou ainda a constituição de uma produtora para gerenciar seus projetos e de seus companheiros, desponta, muitas vezes, como estratégia que permite ao artista negociar sua autonomia enquanto profissional com as outras instâncias que lhe interessam no campo, e não apenas com o mercado. Em outros casos, essas opções de empregabilidade, integram, na mesma medida que a produção de uma “obra”, as atividades de um artista (PUCU, 2017:129).

Entre as diferentes estratégias usadas pelos jovens artistas para alavancarem suas carreiras, saliento o ingresso em cursos de pós-graduação. Com a finalidade de compreender como e porque o ensino superior tem adquirido centralidade na vida desses sujeitos, destaco a fala de Lucas [4]:

Vendi poucos trabalhos meus, então, não poderia dizer que minha fonte de renda é a venda de “obras”. Porém, nos últimos anos tenho recebido bolsa nas universidades em que estudei e também recebi alguns prêmios em dinheiro (Salão de Abril, Rumos Itaú e Funarte) que me ajudaram financeiramente. Desde que comecei a trabalhar com arte, tenho vivido dessas fontes de renda e da pouca ajuda financeira de meus pais [...]. Tenho interesse em seguir os estudos acadêmicos, continuar participando de editais que paguem pelo meu trabalho e também pretendo ser professor. Provavelmente não serei um artista que vive de vendas de obras, pois meu trabalho não está muito dentro do perfil do mercado, porém, não podemos ter certeza disso, pois o “perfil do mercado” está sempre mudando. Eu não sou contra a venda de obras, mas não tenho feito um trabalho muito focado nessa questão, o que talvez tenha dificultado as coisas nesse sentido. Meu foco tem sido as questões do próprio processo e pensamento artístico, por isso tenho enfocado mais essa prática na universidade.

Com efeito, a universidade tem desempenhado um papel importante na carreira dos(as/xs) artistas ao lhes oferecer a possibilidade de atuação na área da docência - há artistas que cursam a licenciatura em artes e se tornam professores; outros, mesmo sem licenciatura, se tornam docentes em cursos livres. No entanto, como disse Lucas, a universidade também se torna atraente através da concessão de bolsas de estudo, que contribuem para o desenvolvimento e manutenção de suas pesquisas artísticas por alguns anos[5]. Assim, o ambiente universitário, enquanto lócus de produção artística, vem se tornando cada vez mais uma alternativa ao mercado de arte mediado pelas galerias.

Outra questão relevante, inscrita na resposta de Lucas, é o contraponto entre a universidade e o mercado de arte. Percebe-se que, cada vez mais, a universidade está associada a um tipo de trabalho artístico que se diferencia daquele voltado para o mercado de arte, por garantir maior liberdade de criação em contraposição ao enquadramento do artista às práticas vendáveis, requeridas pelo mercado. Essa discussão reatualiza o tradicional debate sobre valores artísticos versus valores econômicos, estudada por Raymonde Moulin (2007) e Pierre Bourdieu (2011). A resposta dada por Lucas, mostra como o artista situa a si mesmo e a sua produção em relação ao mercado de arte, bem como o mercado define obras e práticas comercializáveis.

O mercado de arte, entretanto, é uma instância de reconhecimento e consagração dos artistas, mediado atualmente pelas galerias que apresentam as obras aos compradores. Na realidade, as fronteiras são muito tênues entre aqueles que têm práticas artísticas na universidade e os que produzem obras com foco no mercado. Há artistas que negam o mercado, criando trabalhos que não são vendidos por galerias, mas que têm suas obras e práticas encampadas por universidades e que são exibidas em museus, espaços independentes de arte e até mesmo galerias; do mesmo modo, também existem artistas que são professores universitários e não têm problemas em comercializar suas obras, o que aponta para a multiplicidade das estratégias de legitimação e sustento encontradas por esses sujeitos para se manterem no mundo da arte.

A ampliação de possibilidades do fazer artístico é discutida por Ricardo Basbaum em Amo os Artistas-etc:

Quando um artista é artista em tempo integral, nós o chamaremos de ‘artista-artista’; quando o artista questiona a natureza e a função de seu papel como artista, escreveremos ‘artista-etc’ (de modo que poderemos imaginar diversas categorias: artista-curador, artista-escritor, artista-ativista, artista-produtor, artista-agenciador, artista-teórico, artista-terapeuta, artista-professor, artista-químico, etc.) (BASBAUM, 2005:21).

Ampliando a definição de Basbaum, é possível dizer que, atualmente, os (as/xs) jovens artistas são em sua maioria artistas-etc, não porque “questionam seu papel como artistas”, mas porque são obrigados a exercer múltiplas atividades profissionais para poder se sustentar. Essa questão continua central aos debates contemporâneos nas artes visuais. Se para alguns estudiosos das artes a prática artística por excelência seria aquela unicamente voltada para a obra ou o processo artístico, para outros a prática artística e criativa estaria nas diversas atividades realizadas por um artista, desde a curadoria ao ensino de arte, entre outras (PUCU, 2017).

As respostas dos (as/xs) jovens artistas indicam, portanto, alguns dos caminhos trilhados na luta diária pela subsistência, chamando nossa atenção para os mecanismos que invisibilizam ou romantizam a figura do artista multitarefa, sempre correndo atrás de “bicos”, editais e outras atividades para complementar a renda. Se é verdade que os artistas sempre necessitaram atuar como profissionais liberais, isso não significa que eles estejam imunes às transformações no mundo do trabalho.

Em um momento político de desmonte das leis trabalhistas e precarização do trabalho, onde o discurso da “flexibilização” ganha cada vez mais força, é fundamental incluir no debate aqueles que não necessariamente consideram seus trabalhos como precarizados, mas que, de fato, possuem atividades precarizadas em termos de seguridade social e trabalhista. O exemplo dos artistas visuais pode somar nos debates contemporâneos sobre a precarização do trabalho, nos relembrando de que o (a/x) artista também é um (a/x) trabalhador (a/x).

NOTAS:

[1] Este texto é parte de minha tese de doutorado Arte e Consagração: Os Jovens Artistas da Arte Contemporânea, onde busco compreender como jovens artistas constroem carreiras artísticas legitimadas no/pelo universo da arte brasileira.

[2] Neste trabalho, “jovens artistas” é uma categoria analítica que tensiona o entrelaçamento entre idade e tempo de carreira.

[3] Salvo momentos em que há interesse de colecionadores sobre seus trabalhos e, mesmo nestes casos, não é necessariamente o valor de suas obras que são tratados nas notícias. Discuto esse assunto no capítulo 8 da minha tese. Ver: MARCONDES, 2018.

[4] Nome fictício.

[5] É importante destacar que embora sejam uma fonte de profissionalização e renda para pesquisadores em diferentes áreas, não apenas a artística, desde o impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff, as bolsas de estudo oferecidas pelo governo federal vêm sofrendo cortes que inviabilizam pesquisas e a formação adequada de pesquisadores: Ver, por exemplo: Após corte de verbas, CNPq tem recursos para pagar bolsas apenas até este mês - Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2017-08/apos-corte-de-verbas-cnpq-tem-recursos-para-pagar-bolsas-apenas-ate-este>, acesso em 12 de outubro de 2017.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BASBAUM, Ricardo. Amo os Artistas-Etc. In: MOURA, Rodrigo (Org.). Políticas Institucionais, Práticas Curatoriais. Belo Horizonte: Museu de Arte da Pampulha, 2005.

BECKER, Howard S. Art worlds. Berkeley: University of California Press, [1982] 2008.

BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

______. Razões Práticas – Sobre a Teoria da Ação. Campinas/SP: Papirus Editora, 2011.

MARCONDES, Guilherme. Arte, Crítica e Curadoria: Diálogos sobre Autoridade e Legitimidade. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia UFRJ, Rio de Janeiro, 2014.

______. Arte e Consagração: Os Jovens Artistas da Arte Contemporânea. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia UFRJ, Rio de Janeiro, 2018.

MOULIN, Raymonde. O Mercado da Arte: Mundialização e Novas Tecnologias. Porto Alegre: Zouk, 2007.

PUCU, Izabela. Arte como Trabalho (e Vice-Versa). Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Linha de pesquisa em História e Crítica de Arte da UFRJ, Rio de Janeiro, 2017.

STOCCO, Daniela. O Mercado Primário de Arte Contemporânea no Rio de Janeiro e em São Paulo. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia UFRJ, Rio de Janeiro, 2016.

TOKARNIA, Mariana. Após corte de verbas, CNPq tem recursos para pagar bolsas apenas até este mês. EBC Agência Brasil, 03 de agosto de 2017. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2017-08/apos-corte-de-verbas-cnpq-tem-recursos-para-pagar-bolsas-apenas-ate-este>, acesso em 12 de outubro de 2017.

Guilherme Marcondes é Doutor e Mestre em Sociologia e Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ (PPGSA/UFRJ). Atualmente é membro do Núcleo de Pesquisa em Sociologia da Cultura da UFRJ (NUSC), residente de pesquisa no Espacio de Arte Contemporáneo (EAC, em Montevidéu, Uruguai) e assistente de pesquisa no projeto Difusão e Educação Patrimonial do Acervo Histórico do CPDOC/FGV. Já atuou como mediador de exposições em diferentes instituições, assistente educativo e coordenador de pesquisa e memória no Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. Pesquisa temas em Sociologia da Arte, com especial atenção aos processos de legitimação na arte contemporânea.

Contato: gui.marcondesss@gmail.com

 

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