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Marcia Rangel Candido

O LUGAR POLÍTICO DAS MULHERES NO CINEMA DA AMÉRICA LATINA


La Teta Asustada, de Claudia Llosa, 2009

O que se torna visível e, por sua vez, se torna político: o lugar da mulher no cinema latino-americano. Ainda que se enfrente imensa negação a esse lugar, esse é o momento em que se tornam mais visíveis os debates sobre as questões feministas na América Latina, e se adensam os estudos das representações das mulheres nessa cinematografia – temas presentes nos cursos livres de cinema que ministro.

Nessa busca pela afirmação de um lugar político que seja ocupado pelas mulheres, parto de duas perspectivas: dos estudos das imagens das personagens mulheres e de uma análise sobre o cinema de cineastas mulheres, sem perder de vista as referências de pesquisas e críticas sobre a política das representações e sobre o feminismo no cinema, em uma perspectiva histórica. Essas duas extensas e distintas abordagens colocam, de um lado, os embates enfrentados no campo das imagens das mulheres, enquanto resistência à destinação de elas serem objeto sexual ou uma espécie de leitmotiv do espetáculo num filme narrativo. De outro lado, torna-se evidente a valorização das obras de diretoras e o reconhecimento de uma luta histórica por parte de atrizes que reivindicam remuneração igual aos homens, protagonistas e personagens mais velhas. Ambas as questões solicitam aprofundamento nos estudos das representações das mulheres nos filmes produzidos em diferentes momentos do cinema latino-americano, diante da identificação dos sentidos do feminismo nas imagens e na condição social da mulher na produção audiovisual.

Partir do entendimento e reflexão sobre a atual política das mulheres no cinema da América Latina não redime o contexto de uma histórica subalternidade a qual elas estiveram enclausuradas. É entre a limitação do patriarcado e desvios a esse sistema que se identifica a atuação de mulheres, realizadoras e pensadoras, por novos regimes da representação e do olhar.

A defesa da imagem da mulher, distanciada do ícone fetichista de deleite e controle dos homens, aparece nas pioneiras questões feministas no cinema, presentes no célebre texto Prazer Visual e Cinema Narrativo, de Laura Mulvey, e no livro A Mulher e o Cinema: Os dois lados da câmera, de Ann Kaplan, uma das fundadoras da abordagem feminista na crítica cinematográfica dos anos 1970, e atuante nos Estudos da Mulher. Essas questões defendidas por elas são referências importantes no trabalho de contextualizar o feminismo do cinema latino-americano e analisar as imagens da mulher em uma perspectiva estética, política e histórica, compreendendo as relações de poder desde os sistemas coloniais às influências do cinema dominante.

Os estudos sobre a imagem da mulher no cinema da América Latina suscitam novas linhas de pesquisas, que se embasem nas propostas das teóricas feministas, mas se ancorem à perspectiva histórica desse cinema que se legitimou em sua militância política por suas abordagens às realidades pautadas nas incompletudes de projetos nacionais e na condição de países subdesenvolvidos. Ou seja, prioriza-se compreender os enfoques dados à mulher no período clássico e no contexto do cinema moderno latino-americano, assim cunhado desde el Nuevo cine latino-americano, como movimento cinematográfico político, que na década de 1960 reuniu diretores de cinema do Chile, Brasil, Argentina, Bolívia e Cuba com projetos revolucionários, elaborados pelos cineastas, com a ideia de um cinema de descolonização.

Nesse cinema em que se evidenciaram homens no comando de projetos políticos, poucos estudos se dedicam a história das mulheres cineastas latino-americanas, e como as mesmas lidaram com as questões políticas no cinema clássico e nesse cinema militante. Nora de Izcue, dirigiu filmes no Peru e coproduções com o Instituto Cubano nos anos 1970. Helena Solberg, produziu A Entrevista no Brasil de 1966. Há ainda as cineastas chilenas exiladas Valeria Sarmiento e Marilú Mallet e a venezuelana Josefina Jordán que atuava e dirigia. Essas mulheres são alguns exemplos de realizadoras do chamado cinema moderno. Além delas, encontram-se as diretoras do período clássico como a mexicana Adela Sequeyro e a brasileira Carmen Santos. Outra questão que solicita reflexão é o fato de pouquíssimas mulheres negras terem realizado filmes de longa-metragem de ficção ao longo desses períodos. No caso do cinema brasileiro, a primeira cineasta negra, Adélia Sampaio, realizou o filme Amor Maldito em 1984. Importante refletir sobre a condição étnica e a luta de realizadoras que se constroem na tripla afirmação: mulher, negra e cineasta. Também são poucas as análises feitas sobre as representações das personagens mulheres no cinema feito por essas cineastas. Sobre algumas dessas diretoras se destacam os estudos das pesquisadoras brasileiras Karla Holanda e Mariana Tedesco.

Essas reflexões que reúno na defesa do lugar político da mulher na filmografia latino-americana de diferentes períodos, como já mencionei, não se restringem ao cinema de autoria feminina, tema tão bem representado em colóquios de cinema latino-americano e em recentes publicações. A proposta é também pensar as caracterizações das personagens mulheres em uma sucessão de momentos significativos da experiência desse cinema. Os enquadramentos dados à Revolução Mexicana, ao Cangaço, às ditaduras militares, entre outros acontecimentos do passado e presente, são vistos ao lado das questões estéticas e políticas das representações das mulheres, reconhecidas nas obras analisadas.

Importante considerar que ao lado das imagens de mulheres, temos a configuração de homens viris representados em um conjunto de filmes produzidos durante os ciclos e movimentos mais capitulares dessa cinematografia. A masculinidade heroica das revoluções e dos acontecimentos políticos do início do século XX, passando pelos movimentos indígenas e pelas repressões dos latifundiários e militares no campo e da ditadura militar nas cidades, foi tema de diferentes propostas políticas de determinados momentos desse cinema. No período clássico e no cinema de resistência da década de 1960, os filmes representam, em versões romântica e revolucionária, as revoltas dos heróis bandoleiros: o Lampião no Brasil, o Pancho Villa no México e o gaúcho desbravador de fronteiras na Argentina. Há ainda a configuração de outras personagens masculinas em outras cinematografias, tal como o cacique Tupac Amaru e as associações de sua imagem ao conflito armado no cinema peruano.

Como as mulheres estiveram representadas nessa cinematografia moderna, e o que muda ou se manteve na construção de suas personagens na cinematografia clássica, e na contemporânea? A proposta é caracterizar a mulher que se manifesta nos temas da liberação da coroa espanhola e portuguesa, passando pelas revoluções e momentos políticos mais recentes, em uma perspectiva crítica às suas condições simbólicas de resistência ou de passividade. Essa análise se estende às mulheres soldaderas da Revolução Mexicana, à mulher em sua condição de exílio no cinema argentino, às “Lúcias” que vivenciaram a independência da coroa espanhola, a Revolução Cubana e uma Cuba independente do filme Lucía, de Humberto Solás, entre outras produções de diferentes períodos.

As relações entre representações das mulheres latino-americanas à política desse cinema são vistas ao lado das estratégias, estéticas e narrativas, desenvolvidas por suas diretoras e diretores para a elaboração de seus conteúdos. As mulheres, como personificação das nações latino-americanas, definiram e definem contornos estéticos, poéticos e políticos nessa cinematografia que produz e articula visões sobre o passado e presente. Discutir essas representações através de diferentes leituras leva a um melhor entendimento das estéticas e de suas relações com a atual política desse cinema.

A cineasta peruana Cláudia Llosa, por exemplo, recorreu ao realismo mágico e ao barroco para representar o irreal ou o estranho do universo das mulheres andinas como algo cotidiano e comum em seus filmes Madeinusa e La teta asustada. Nessas produções, a contextualização do imaginário andino, culturalmente transformado, com influências da religião cristã, colonizadora, e do contexto político do conflito armado entre guerrilheiros senderistas e militares do governo, corrobora com o engajamento em realidades passadas, demarcadas na perspectiva das narrativas. As abordagens do conflito armado e do imaginário cristão, sobrepostos à cultura indígena, permitem essa mediação para a construção da crítica às opressões vividas pelas mulheres andinas. Entre a fábula e a perspectiva crítica, essas produções trabalham as imagens das mulheres diante de alguns temas tabus, como incesto, estupro e dominação patriarcal.

Assim como esses dois filmes, há uma constelação de produções contemporâneas, principalmente as realizadas por diretoras, que caracterizam mulheres protagonistas, subalternizadas, em suas jornadas de heroína. Essas obras constroem políticas feministas numa articulação retórica e estética. Descobrir essas mulheres dos dias de hoje em seus enfrentamentos é uma forma de desvendar as opressões relacionadas a específicos processos históricos. Assim, o lugar de fala, de escuta, e de visão das (ou sobre as) mulheres confronta esse passado e define, nos estudos e na prática cinematográfica, outros rumos a serem trilhados.

Ana Daniela de Souza Gillone é professora e pesquisadora de cinema, com pós-doutorado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP)

 

Editora responsável: Iana Cossoy Paro

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