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  • Marcia Rangel Candido

DITADURA CHILENA E CINEMA TRANSNACIONAL


Películas escondidas, de Claudia Sandberg e Alejandro Areal, 2015

Há alguns anos pesquiso um fenômeno que denominei “cinema de solidariedade ao Chile”, que consiste na existência de um amplo corpus de filmes e reportagens sobre a ditadura chilena feitos por diretores e canais de televisão estrangeiros. A lista de títulos localizados, iniciada em um pós-doutorado em 2014, é cada vez mais extensa, e compõe, até agora, uma teia de conexões envolvendo 20 países. Após 1973, Pinochet passou a encarnar o exemplo máximo do ditador sanguinário, o que paradoxalmente impulsionou a formação de uma imensa rede internacional de solidariedade às suas vítimas. Em meio ao esforço para encontrar alusões perdidas que pudessem acrescentar novas linhas na minha tabela, me deparei com um documentário que se ocupava de uma tarefa parecida, se não com a mesma intenção, ao menos com um similar interesse por “películas” nas quais o Chile e os chilenos eram os protagonistas.

Películas escondidas (2015), realizado pela alemã Claudia Sandberg (professora de cinema) e pelo argentino Alejandro Areal Velez, recupera a produção cinematográfica da DEFA sobre o Chile e traz novamente às telas cenas do exílio na República Democrática Alemã (RDA). O filme confronta memória pessoal com memória histórica; a geração do exílio (pais e filhos desterrados) com as novas gerações. As primeiras cenas mostram Sandberg num gesto cliché, revisitando álbuns de fotografias tiradas em 1974, seguidas por tomadas em que ela apresenta seus lugares de memória em Mecklenburg-Vorpommern (antiga Alemanha Oriental) aos seus filhos. A voz over da cineasta em primeira pessoa (recurso narrativo que apenas em raras exceções é proferido por Areal Velez) volta no tempo e recorda as tardes de sábados passadas em frente à televisão, quando pôde assistir um filme em que a protagonista era uma menina chilena de sua idade. A partir daí, surge o projeto de recuperar essas “películas escondidas” da DEFA em que personagens e atores eram vítimas da ditadura e exibi-las para diferentes plateias contemporâneas, especialmente compostas de jovens latino-americanos.

Produção argentina, o documentário transita entre Alemanha, Chile, México e Argentina, com o intuito de questionar essas audiências após a exibição dos filmes alemães dos anos 1970 e 1980 que tratavam de desaparições, perseguições e da vida dos exilados chilenos na RDA. Inscrito na efeméride dos 40 anos do golpe de Estado (já que começou a ser filmado em 2013), Películas escondidas sugere um estranhamento por parte desses jovens – especialmente dos chilenos de classe alta – ante a temas sensíveis do passado. Um estranhamento que repete, de alguma forma, aquele demonstrado pelos filhos da cineasta diante das paisagens alemãs de sua infância. O documentário, já em seu título, se coloca como um filme de busca, que articula a procura pelo material fílmico, pela relevância atual desses arquivos, pelo destino de atores e diretores situados naquele contexto, pelo passado de Sandberg, pelo exílio e, por fim, pela memória sobre a extinta Alemanha Oriental. Assim, são intercaladas imagens de arquivo das películas, tomadas atuais das sessões de exibição, algumas entrevistas e filmagens que exibem os próprios diretores ao longo do percurso de realização do filme. Essas circulações transnacionais, temporais e geracionais são motivadas pela tentativa de encontrar rastros do evento traumático de 11 de setembro de 1973 na contemporaneidade.

Películas escondidas, de Claudia Sandberg e Alejandro Areal, 2015

O documentário de Sandberg e Areal Velez dialoga, indiretamente, com um filme de grande sucesso lançado na França quase uma década antes: A culpa é de Fidel (Julie Gavras, 2006). Inserido em uma onda em que o cinema recorreu, com certa frequência, a leituras sobre as ditaduras latino-americanas pelo viés de personagens crianças – uma maneira de refletir sobre a dimensão e a transmissão geracionais do trauma –, essa ficção francesa satiriza o frisson causado pelo governo de Salvador Allende e sua derrocada na geração do pós-Maio de 1968 na França. Julie, como se sabe, é filha do diretor grego naturalizado francês Costa-Gavras, um nome fundamental do cinema militante desde os anos 1960. O enredo dos irmãos que vivem o golpe do Chile desde seu apartamento parisiense, graças ao engajamento solidário dos pais, se torna autobiográfico quando se considera o envolvimento do pai da cineasta com o projeto da Unidade Popular. Costa-Gavras foi ao Chile em 1972, onde filmou Estado de sítio (1973), que, embora trate dos tupamaros uruguaios, teve como locação a cidade de Santiago. Posteriormente, dirigiu Missing, o desaparecido (1982), sobre a desaparição do jornalista estadunidense Charles Horman no contexto do pós-golpe chileno.

Sandberg e Julie Gavras rememoram infâncias tocadas pelo acontecimento traumático transatlântico que, de forma indireta, invade sua vida privada. Películas escondidas e A culpa é de Fidel, no entanto, são filmes feitos em contextos democráticos e fora das fronteiras chilenas. Desse modo, se tornam produtos culturais interessantes para se pensar a extensão e a força dos laços criados pelas redes de solidariedade que não parecem se limitar aos anos da longa ditadura (1973-1990). O “Chile de Allende” e o “Chile de Pinochet” permanecem nos imaginários como dois paradigmas de socialismo e repressão, respectivamente.

O caso de Películas escondidas é interessante por sua dimensão transnacional extrafílmica: um filme argentino sobre o exílio chileno na RDA, dirigido por uma alemã radicada na Austrália e um argentino. Há, sem dúvida, a ênfase na ideia de desterro que faz com que o produto “filme” acompanhe as trajetórias dos exilados – ou seja, dos protagonistas das “películas escondidas” – e da própria Sandberg. A diretora se apresenta também como uma “exilada” em relação ao país de sua infância, agora inexistente, a Alemanha Oriental. Um tipo de exílio particular, pois ocorre mais no tempo do que no espaço. A diretora vem de um lugar do passado, inserto numa época de fronteiras geopolíticas e ideológicas outrora muradas.

As trajetórias de Películas escondidas, fílmica e extrafílmica, me levam a pensar novamente em minha pesquisa. Quando comecei um doutorado sobre filmes chilenos de um diretor francês (Chris Marker), em 2008, era constantemente indagada sobre as razões que me levaram a um projeto tão alheio ao universo de uma brasileira, que até então só havia morado em São Paulo (iniciava-se aí, também para mim, um processo de desterro). Nunca soube responder. A verdade é que o tema surgiu na constatação de um buraco: por que ninguém pesquisou ainda essa filmografia? A partir daí, novas questões apareceram, o Chile passou a ser o centro de uma constelação de países conectados por essa rede solidária de dimensões difíceis de mensurar. Hoje me vejo atrás de películas que precisam ser descobertas, pelo prazer da pesquisa e pelo dever de memória que concerne ao ofício do historiador.

Cada filme encontrado se torna um indício do largo espraiamento mundial do projeto de socialismo democrático conhecido como “experiência chilena”. Essa filmografia revela igualmente uma repressão que, assim como as imagens do bombardeio do La Moneda no trágico 11 de setembro, se tornou cinematográfica. O cinema deu forma aos sonhos e imaginários derrotados com Allende, mas também aquilo que a ditadura tentou ocultar após 1973. Esse “cinema de solidariedade” se tornou, porém, um enigma desconhecido, talvez pela concepção de serem filmes datados, situados no “espírito de uma época” que a democracia julgou haver superado. Todo o esforço de trazê-lo à tona é, portanto, necessário.

Carolina Amaral de Aguiar é professora de História da América na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Fez doutorado em História Social e pós-doutorado em Cinema na Universidade de São Paulo (USP). Atualmente desenvolve um novo projeto de pós-doutorado em História na Unicamp. É autora do livro O cinema latino-americano de Chris Marker, publicado pela Alameda em 2015.

 

Editora responsável: Iana Cossoy Paro

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