top of page
  • Marcia Rangel Candido

O MONSTRO QUE CRIAMOS


As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017

O filme As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017) chega aos cinemas para mostrar tudo que O Bebê de Rosemary (Roman Polanski, 1968) deixou no ar. Retoma o horror à maternidade, presente em filmes anteriores de Juliana Rojas, com o qual me identifico em gênero, número e grau.

Ana (Marjorie Estiano, em seu melhor papel) esconde o futuro rebento até de si mesma em roupas pretas, salto alto e cerveja em seu aniversário de 29 anos (“Cabô meu retorno de saturno!”). A cantiga de ninar na sua voz com sotaque do interior de Goiás deixa grossas lágrimas nos olhos.

Clara (Isabél Zuaa) chega ao apartamento de Ana com os jeans e a mala camuflados à parede e aos muitos outros detalhes azul bebê. Transita muito bem entre os dois atos do filme, com sorriso evidente e menos contida quando ocupa um espaço seu “ainda que com um menino branco”, como tive o prazer de ouvir pessoalmente da atriz. Clara leva consigo o porta-retratos, a caixinha de música com o cavalo branco, a arma junto ao útero e os diamantes retirados da bota country com uma faca – memórias que cabem numa caixa de sapato.

Gilda (Gilda Nomacce, incrível atriz recorrente na filmografia da diretora) deixa breves dicas de como flertar no bar ao encontrar Clara. Dona Amélia (Cida Moreira) – sempre com sua gata Teobalda (gato Guigui) – é outra personagem bem construída, que oscila entre fortaleza e vilania e rouba a cena ao cantarolar Canção da Espera que há de ser o hino de toda angústia.

A trilha sonora mescla o instrumental primoroso dos Garbato Bros ao sertanejo preferido pela coadjuvante – sábia mistura de elementos da nossa cultura no horror rural. Aliás, o musical é um dos gêneros melhor trabalhados por Rojas, como iniciado no anterior Sinfonia da Necrópole (2014). Como curiosidade, vale mencionar que a diretora faz uma ponta na reportagem exibida na televisão da farmácia, desfigurada no rosto e na voz.

Mas quem não gosta de criança? (risos). A maternidade é culturalmente romantizada, desde o médico que trata o bebê no diminutivo “olho, nariz, boquinha”, enquanto a mãe mostra pânico no olhar. A etiqueta subvertida inspira o título do filme: pra quê tomar sopa sem fazer barulho e caminhar com livros na cabeça? A lareira digital traduz uma contemporânea vivência fake.

Pinturas contam a transgressão em mais tons de azul. A mulher do padre-lobisomem isolada por subverter o que dela é esperado, punida pela fuga do noivo Aécio. O condomínio vencendo, o crédito não autorizado, o sonho com dentes caindo da boca. Verduras substituem carnes vermelhas na geladeira. Sangue na boca, no sacrifício, no macarrão. Essas figuras podem estabelecer relações com o canibalismo, também bem retratado em filmes como Desejo e Obsessão (2001) e Raw (2016), das cineastas Claire Denis e Julia Ducournau, respectivamente.

Joel (Miguel Lobo, trocadilho involuntário?) cresce, um “menino com fome, como se quisesse agarrar a vida”, mas que nunca provou MORTAdela. Passa dias preso em um quartinho durante a lua cheia e tem garras mais femininas que monstruosas. A espada fake de papelão, o patinho meio sujo com espuma na banheira, o lenço vermelho pra simbolizar morte, garotinhas confiantes o bastante para convidarem os meninos pra dançar na Festa Junina. Ana ressurge em sonho, no meio de uma conversa entrecortada, deixando uma nostalgia que só morre um pouco olhando a foto que restou e ouvindo “Chora me liga”.

O monstro nasce de alguma barriga, precisa ser alimentado pra crescer, é um produto da sociedade, que quando ameaçada o persegue com tochas de fogo, como em Frankenstein, de Mary Shelley. Porém, esta película mostra que é preciso dar as mãos para o monstro que criamos.

Stephania Amaral é formada em Letras pelo Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET-MG), podcaster no Feito por Elas e no Cinematório e pesquisadora de cinema de horror dirigido por mulheres no mestrado do Programa de Estudos de Linguagem, também do CEFET-MG

Contato: stephaniaamaral@gmail.com

 

Editora responsável: Samantha Brasil

165 visualizações
Relacionados
bottom of page