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  • Marcia Rangel Candido

UMA ROSA LUXEMBURGO PARA O SÉCULO XXI


Por que num momento de derrota da esquerda na América Latina e no mundo falamos ainda de Rosa Luxemburgo? Que fez essa revolucionária judia-polonesa-alemã para que cem anos depois de seu assassinato suas ideias ainda nos interpelem?

Comecemos com uma breve nota biográfica. Rosa militou durante vinte anos na social-democracia da Polônia e da Alemanha; polemizou a vida inteira com Lênin; participou ativamente da Revolução Russa de 1905; foi a única mulher professora na escola do Partido Social-Democrata Alemão (SPD), onde lecionava economia política; junto com seus amigos da ala esquerda do SPD fundou a Liga Spartakus; passou quase toda a guerra encarcerada, onde, além de textos políticos que contrabandeava para fora da prisão, escreveu cartas cheias de lirismo a seus amigos e amores; saiu da prisão em novembro de 1918 e se converteu em uma das líderes do pequeno grupo spartakista durante a revolução de novembro na Alemanha; no fim de dezembro de 1918 foi cofundadora do Partido Comunista Alemão (KPD); foi assassinada, junto com seu companheiro de partido Karl Liebknecht, por tropas paramilitares (precursoras das tropas nazistas) no dia 15 de janeiro de 1919. Seus assassinos tiveram penas leves e viveram tranquilamente na Alemanha nazista.

A recepção de suas ideias no século XX foi muito controvertida. Durante a vida sofreu ataques machistas dos companheiros de partido que tinham medo de sua língua afiada e de sua independência de espírito. Se referiam a ela como “materialismo histérico” ou “cadela venenosa, mas brilhante” (Victor Adler); quando foi nomeada redatora-chefe de um importante jornal social-democrata enfrentou quase uma rebelião dos colegas jornalistas que duvidavam de sua competência pelo fato de ser mulher; os conservadores na Alemanha a chamavam de “porca judia”; na Polônia, sua terra natal, é odiada até hoje; em 2001 quando a prefeitura de esquerda de Berlim propôs construir um monumento em sua homenagem se desencadeou uma tempestade de críticas na imprensa e ataques contra a mulher, agora mais sutis: ela nunca recebeu uma proposta de casamento dos namorados nem nunca realizou o desejo de ter filhos. Quem questionaria um homem dessa maneira, apelando para sua vida privada? O ataque mais recente ocorreu no começo de 2018, em Zamość , sua cidade natal. No prédio em que supostamente Rosa teria nascido, havia uma placa comemorativa que foi retirada pela administração da cidade, fazendo eco ao conservadorismo hoje dominante na Polônia.

Além das críticas machistas, existiam as críticas de caráter político que começaram com Lênin, continuaram no KPD (uma das adversárias de Rosa qualificou a influência de suas ideias no KPD como “bacilo de sífilis”) e chegaram ao paroxismo com o stalinismo, que procurou extirpar sua memória do campo da esquerda. Por exemplo, Thälmann, dirigente do KPD, disse em 1932: “Em todas as questões em que Rosa Luxemburgo tinha uma concepção diferente da de Lênin ela estava errada.” Mas essa tentativa de matar sua memória foi em vão. Rosa sobreviveu subterraneamente até ser redescoberta nos anos 1970 quando na República Democrática Alemã sua obra completa começou a ser publicada: escritos políticos, escritos teóricos e cartas.

É um fato que Rosa sempre volta em momentos de crise da esquerda. Isso ocorreu no Brasil depois da Segunda Guerra Mundial, na Europa durante a rebelião de 1968, no movimento Occupy, no Brasil em 2016 com o movimento de ocupação das escolas quando voltamos a viver um “momento Rosa Luxemburgo”. Por que isso acontece?

Vejamos rapidamente algumas de suas ideias políticas centrais: defesa intransigente das liberdades democráticas em todas as sociedades e em todos os tempos; crítica incisiva da concepção de partido de vanguarda formado por um núcleo duro de revolucionários profissionais separado das bases, cuja função seria liderar as massas populares, que, por sua vez, se limitariam a obedecer ao comando vindo de cima; defesa incondicional da necessidade da formação política e intelectual das classes subalternas, que Rosa via como pré-requisito para sua independência política; e, finalmente, uma ideia que está na ordem do dia, a da espontaneidade das massas populares. Ou seja, a ideia de que as camadas subalternas da sociedade entram em ação independentemente das palavras de ordem dadas por lideranças partidárias ou sindicais e que a organização se constrói a partir da própria luta, quotidiana e/ou revolucionária. Mas ela também sabia que só espontaneidade não resolve, que o trabalho organizativo é fundamental para estruturar as revoltas que explodem esporadicamente no ramerrame da vida quotidiana.

Para dizerem poucas palavras, o que mais atrai um leitor contemporâneo no pensamento de Rosa Luxemburgo é sua defesa apaixonada da liberdade, tanto pública quanto individual. Para Rosa não há sociedade livre sem indivíduos livres, conscientes, não manipulados, quer por lideranças políticas, pela mídia, pela propaganda (como diríamos hoje numa linguagem atualizada), quer, no plano individual, por suas paixões e fantasmas. Rosa é filha da Aufklärung, do Iluminismo, como todo o marxismo. Esse era seu mundo e seu limite. Mas apesar de sabermos, depois de Freud, que não basta o esclarecimento racional, penso que ela tinha razão em acreditar que não existe possibilidade de mudar o mundo sem a iniciativa e a participação ativa e consciente dos de baixo, os que mais sofrem com a desigualdade econômica, social e política engendrada pelo capitalismo.

Há também outra ideia de Rosa que nos atrai até hoje e que aparece no ensaio A crise da social-democracia (1916). Nesse balanço amargo do processo de decomposição da social-democracia alemã – que culminou na aprovação dos créditos de guerra pela bancada do SPD em 4 de agosto de 1914 –, Rosa põe em questão,de modo agora mais incisivo que antes, a ideia ingênua de progresso, típica da II Internacional. Para os socialistas hegemônicos na época, essa ideia se traduzia na crença de que o socialismo resultaria, mais cedo ou mais tarde, das contradições imanentes ao modo de produção capitalista. Nesse escrito, um de seus melhores, Rosa põe na ordem do dia a palavra de ordem socialismo ou barbárie, dando assim a entender que o socialismo já não é uma garantia e sim uma aposta. E essa aposta só poderá ser vencida com o compromisso ativo das classes subalternas, aqui e agora, contra a barbárie. Essa é a interpretação de Michael Löwy com a qual estou inteiramente de acordo.

É preciso também fazer referência a sua obra de economia política na qual Rosa Luxemburgo apresenta elementos de uma visão “terceiro-mundista” que é muito frutífera para nós da América Latina. Segundo Rosa, a acumulação do capital, para além da apropriação de mais-valia, só foi e é possível no intercâmbio entre economias capitalistas e não capitalistas. Esta continua sendo até hoje uma descrição válida do processo de desenvolvimento histórico do capitalismo como processo global e, consequentemente, uma boa descrição da destruição violenta das culturas e dos espaços não capitalistas. Esse processo violento de acumulação primitiva permanente (acumulação por expropriação, para David Harvey), além dos métodos tradicionais de expropriação territorial, consiste também em converter antigos direitos em mercadorias.

Rosa enfatiza a violência com que as culturas primitivas são aniquiladas pelo colonizador europeu e substituídas pela economia de mercado. Isso não significa progresso em relação ao período anterior, e sim a ruína econômica e cultural dos povos originários. Diferentemente de uma concepção iluminista de progresso, segundo a qual a violência capitalista é vista como um mal “necessário”no caminho que leva ao socialismo, Rosa acredita que os povos originários podem ensinar aos “civilizados” formas de sociabilidade mais igualitárias e não predadoras, determinadas pelos interesses da coletividade. Rosa, que era polonesa – ou seja, periférica na Europa do começo do século XX – tem insights (que não desenvolve) que apontam para uma concepção de história distinta daquela do marxismo ortodoxo de seu tempo, caracterizada por uma fé ingênua no desenvolvimento das forças produtivas. As populações tradicionais da América Latina, em busca de um modelo de desenvolvimento crítico do modelo de civilização oriundo da revolução industrial, que leva necessariamente à dicotomia entre pobres e ricos e à destruição da natureza, podem ter em Rosa Luxemburgo uma fonte de inspiração.

E, por último, ela é uma referência para as feministas. Basta pensar no funcionamento interno das organizações políticas, dos movimentos, onde impera a hierarquia, o centralismo, a rigidez, a burocracia, tudo o que Rosa questiona. Além disso, ao formar-se como mulher independente, que atua no espaço público, também questiona a sujeição das mulheres ao isolamento da vida privada, à submissão aos homens. Ou seja, questiona o patriarcado que é inseparável do capitalismo.

Kate Evans, na sua biografia em quadrinhos de Rosa Luxemburgo, intitulada Rosa Vermelha (Martins Fontes/Fundação Rosa Luxemburgo, 2017), enfatiza a Rosa feminista. Evans mostra uma mulher que, para além da dedicação apaixonada à militância e à revolução, se entrega de corpo e alma aos prazeres da vida, ao amor, ao sexo, à natureza, à pintura, música, literatura. A autora mostra também uma professora talentosa, que sabia explicar didaticamente aos alunos (adultos que frequentavam a escola do partido) os conteúdos mais difíceis da economia política, tudo isso coroado por uma escrita cheia de vivacidade, ironia, palavras espirituosas, ou cheia de lirismo, como mostram as cartas da prisão. Sobretudo o que é admirável nessa biografia escrita por uma mulher jovem não especializada no estudo da obra de Rosa Luxemburgo é que ela consegue mostrar a proximidade entre nós e essa revolucionária que viveu na passagem do século XIX ao XX, uma proximidade que deriva em parte de sua intensa relação com a vida, com todos os seres vivos. Esse é um traço muito forte de sua personalidade que a leva a opor-se a tudo que é rígido, inflexível, mecânico, numa palavra, burocrático. Quando, por exemplo, critica Lênin, Rosa diz que suas concepções, tanto de partido quanto de revolução, são mecânicas. A metáfora da vida é usada por ela com frequência para opor-se a tudo que considera mecânico.

Para ela “Só uma vida fervilhante e sem entraves chega a mil formas novas, improvisações, mantém a força criadora, corrige ela mesma todos os seus erros. Se a vida pública de Estados de liberdade limitada é tão medíocre, tão miserável, tão esquemática, tão infecunda, é justamente porque, excluindo a democracia, ela obstrui a fonte viva de toda riqueza e de todo progresso intelectual.” (A Revolução Russa). Rosa critica os bolcheviques porque ao dissolverem a Assembléia Constituinte impedem que as camadas populares façam suas próprias experiências da vida democrática na revolução; é como se Rosa dissesse que eles intervêm de fora porque já sabem o que é melhor para o povo. Assim, substituem as massas populares que consideram não estarem ainda prontas para o socialismo. Para Rosa, o socialismo só pode ser obra das próprias massas, não de lideranças intelectuais que sabem melhor o que lhes convém. Para isso é necessário tempo de maturação. “Tempo não é dinheiro, tempo é o tecido da vida”, como disse nosso grande crítico literário Antonio Candido, que também era socialista. A democracia e, mais ainda, o socialismo democrático é uma invenção permanente que necessita vida pública livre, absolutamente necessária para a formação política de toda a sociedade e, sobretudo, das classes subalternas.

A crença nas virtudes curativas da vida aparece muitas vezes na correspondência da prisão como, por exemplo, nesta carta a sua amiga Sonia Liebknecht (dezembro de 1917), onde Rosa explica porque não se desespera por viver tanto tempo encarcerada:

Creio que o segredo é apenas a própria vida (…) Sob os passos lentos e pesados da sentinela canta também uma bela, uma pequena canção da vida – basta apenas saber ouvir.

Em resumo, a biografia de Rosa Luxemburgo desenhada e escrita por Kate Evans não é, como outras anteriores, a de uma mártir assexuada e cheia de pudor, que sacrificou a vida no altar da revolução – como se fosse uma santa comunista – mas uma mulher de carne e osso, divertida, ousada, à frente de seu tempo, que rejeitava o espartilho, controlava seu corpo para não engravidar, numa palavra, uma mulher que conquistou sua liberdade com muita luta e sacrifício. Ela sabia que liberdade outorgada não é verdadeiramente liberdade. Acredito que essa seja a mensagem que Rosa deixa para as mulheres do século XXI que lutam ainda por sua emancipação.

Para acessar vídeoaulas, baixar livros e ler mais sobre a autora alemã visite o site da Fundação Rosa Luxemburgo: www.rosaluxspba.org

Isabel Loureiro é professora aposentada do Departamento de Filosofia da UNESP. Ex-presidente (2003-2011) e atual colaboradora da Fundação Rosa Luxemburgo.

 

Editora responsável: Marcia Rangel Candido

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