top of page
  • Facebook - Black Circle

O FANTASMA DE MARX

Marcia Rangel Candido

Em 5 de maio deste ano Karl Marx comemorou 200 anos. Comemoraria, no caso, se estivesse vivo. Mesmo tendo uma vida razoavelmente longa, Marx faleceu em 1883, quando o Brasil ainda era Império e o automóvel uma novidade inusitada. Comemorar seu aniversário, portanto, gera um certo estranhamento, pois para fazê-lo é preciso de algum modo suspender a diferença entre vida e morte. Celebrar o nascimento de alguém já falecido é dar parabéns a um fantasma, o que de vivo que resta de um corpo morto. Não é à toa, por exemplo, que fantasma seja sinônimo de ​​espírito, e que o espírito – além de coração da filosofia hegeliana – seja o que de imaterial que constitui nossa subjetividade, aquilo que escapa a nossa corporeidade, aquilo que por transcender o corpo humano o qualifica como humano antes de mais nada.

Tratar Marx como um fantasma está longe de ser uma ofensa, quanto mais um absurdo. Marx, o materialista, adorava falar em fantasmas, espíritos, espectros. Essa figura permeia seus escritos tanto de juventude como de maturidade, e não por acaso Jacques Derrida recorre justo a Marx para desenvolver sua “assombrologia (hauntologie)”. O conceito de fantasma – se é que podemos chamá-lo assim – permite muitas reflexões. Para começar, o fantasma é, por definição, aquele que assombra. Seu aspecto sombrio está diretamente ligado às sombras nas quais habita. Sua presença é sempre indireta: ele “possui” objetos, abre janelas e fecha portas, mas nunca pode ser olhado de frente, enfrentado, nem (des)comprovado cientificamente. O fantasma só existe pelos seus efeitos, pela cadeira que se move, pela mesa que flutua, pelo sujeito que dele foge.

Nesse sentido, falar no fantasma de Marx é nada mais do que atestar um fato: nenhum espectro assombrou tanto a história mundial nos últimos 200 anos quanto o seu. Alçado à posição de profeta por movimentos políticos, aplicado como doutrina por Estados e declarado inimigo público pelos economistas, o século XX (e XXI!) não pode ser compreendido ignorando seu nome. Assim como um fantasma, contudo, sua presença se deu de forma espectral, muito mais pelos seus efeitos do que pela sua própria existência. Seu assombro só podia se dar em virtude dessa incerteza fantasmática que rondava – e ainda ronda – sua figura. Se as diversas correntes do marxismo nunca conseguiram chegar a um consenso sobre o que caracterizaria a “obra” de Marx, talvez tenha sido mais pela impossibilidade de encarar seu fantasma de frente do que por inaptidão filosófica.

Um outro problema dessa delimitação está ligado não ao fantasma que Marx se tornou, mas aos fantasmas com que conviveu ainda em vida. Da crítica do socialismo utópico à crítica da economia política, Marx levou a cabo seu projeto juvenil de criticar impiedosamente tudo o que existia – inclusive os fantasmas. Sua crítica a Stirner, na Ideologia Alemã, se ampara no problema do espírito em seu duplo sentido; a forma pela qual o comunismo assombrava a Europa da Primavera dos Povos era espectral; sua leitura da Revolução Francesa e do Golpe de 1851 de Bonaparte é permeada do começo ao fim pelos fantasmas que insistem em retornar e repetir a história; no Capital, é famosa a descrição sobre o “caráter fantasmagórico” da forma-mercadoria e o fetichismo que lhe é próprio; isso para não mencionar o fantasma de Hegel, que desde a sua vida escolar nunca cansou de voltar para dar seu tom aos escritos do velho barbudo.

Diferente de Marx, contudo, o marxismo realmente existente sempre preferiu reprimir seus fantasmas, o que, em termos freudianos, fez com que eles constantemente voltassem para assombrá-lo. Os marxistas historicamente se utilizaram de dois métodos para lidar com o problema do fantasma e suas consequências. O primeiro relembra a série animada de mistério Scooby Doo: os supostos fantasmas seriam sempre questões “materiais”, “reais”, concretas, disfarçadas de abstrações fantasmáticas esperando pelo seu desvelamento. Todas as estranhezas apontadas por Marx no funcionamento da economia e da política estariam à espera das “crianças enxeridas” dispostas a retirar as máscaras e revelar algum interesse de classe imperialista. Haveria sempre algo ou alguém por trás da falsidade aparente, uma verdade oculta a ser revelada. O outro método se amparava no estilo científico de Caça-fantasmas, em que se reconhece a “verdade” dos fantasmas, mas busca-se o “fundamento material” capaz de explicar sua metafísica. O objetivo passa a encontrar o “ectoplasma”, a instância material daquilo que nos assombra fantasmaticamente, o que permite tanto explicar racionalmente como enfrentar politicamente os espíritos e espectros que nos rondam. Se as abstrações não são meramente enganações ideológicas, ainda assim ocultam uma realidade material subjacente que as explicam.

Eu diria que Marx optou por um caminho diverso no seu trato com os fantasmas bem como com a realidade social do capitalismo. Parafraseando o próprio no Capital, é muito mais fácil encontrar o “núcleo terreno das nebulosas representações” fantasmáticas do que, inversamente, desenvolver a partir das condições reais e concretas da vida suas correspondentes formas fantasmatizadas. “Este”, dizia ele, “é o único método materialista e, portanto, científico”. Se em sua juventude Marx flertou com a possibilidade de encarnar o Espírito de Hegel em algum sujeito histórico, acabou descobrindo em sua maturidade que o espírito da história moderna era o de acumulação incessante e excessiva do capital. Se em alguns escritos clássicos o materialismo se caracterizava por dar concretude às abstrações como dinheiro e Estado, no Capital Marx descobriu que o fundamento do capitalismo é, ironicamente, um fundamento abstrato fantasmático.

Sua teoria do valor é inegavelmente o melhor exemplo dessa assombrologia crítica. Diferentemente do que propaga a vulgata, o valor, para Marx, não pode nem ser confundido com o “valor” que nós subjetivamente atribuímos a algum bem, nem pode ser deduzido pelo tempo de trabalho efetivamente despendido em sua produção. O valor, na verdade, é uma categoria que carrega a contradição do capitalismo em seu seio pois só pode existir socialmente. O valor é fruto das relações humanas organizadas sob um modo de produção capitalista, mas, por outro lado, é como o capitalismo se estrutura como se o valor fosse, de fato, uma “propriedade” das mercadorias produzidas. A complicação está no fato de que essa “coisificação” de algo que só existe em uma relação social independe de os agentes que realizam trocas acreditarem ou não nelas. É justo porque eles trocam – porque estipulam preços para os produtos; pagam os preços estipulados pelos vendedores; aceitam um preço em troca de sua força de trabalho, etc. – que realizam essa “validação social” do valor.

Por isso o valor não pode ser confundido com uma apreciação subjetiva ao passo em que não pode ser efetivamente medido pelo “tempo de trabalho”: o “tempo” e o “trabalho” envolvidos na composição do valor são abstrações, são o lado oculto do trabalho concreto dispendido no tempo concreto de um processo de produção. É por isso que um software pode ter um valor tão alto e um serviço fundamental para a sociedade como a limpeza urbana um valor tão baixo. É como se a mão invisível da “sociedade” atribuísse a parte de importância que cabe a cada uma dessas atividades. Mas como a sociedade não pensa nem reflete sobre si – a “sociedade” propriamente não existe, ou existe somente em seus efeitos práticos –, essa partilha do valor está fadada à irracionalidade e à destruição. Se o valor “possui” a mercadoria como um encosto – algo tão assombroso quanto mesas dançando por vontade própria, diria Marx –, é inevitável que a relação de dominação se inverta: não são as pessoas que, de fato, possuem as mercadorias e a elas impõem sua vontade; são as mercadorias que, possuídas pelo valor, impõem sua “vontade” aos seus possuidores. E a vontade das mercadorias, dizia Marx, é justamente a acumulação incessante de valor, a alquimia envolvida em transformar dinheiro em mais-dinheiro. O delírio da afirmação não deveria surpreender quem vive em uma sociedade tão delirante quanto a sociedade capitalista.

Não basta, portanto, arrancar a máscara do fantasma do valor ou buscar o ectoplasma de sua substância material: o mais minucioso exame de uma mercadoria se deparará inevitavelmente com um fundamento vazio, puramente social. E por isso a tarefa da teoria crítica é tão complexa, porque ela põe a questão de como enfrentar algo que é, na verdade, uma relação social. Como romper com algo que é estruturante da nossa própria capacidade de entender o mundo ao nosso redor. Se a ganância do 1% – mesmo quando é real e obscena – é insuficiente para explicar o funcionamento da sociedade, atacá-la é, de certo modo, desviar o foco do problema. Se o imperialismo das grandes potências reparte o mundo como se reparte um bolo, considerá-lo a raiz de todos os nossos problemas é ignorar as imposições que o capital faz aos governos. Pensar em formas de enfrentar relações sociais é pensar em formas de reorganizar a vida em comum, algo que envolve tanto uma radicalidade teórica como uma potência criativa emancipatória – algo que, como o capital, depende mais das práticas do que das ideias que temos sobre elas.

Retornamos inevitavelmente à questão do “que fazer” com os fantasmas que nos rondam – e com o de Marx, em específico. A solução, me parece, é fazer o que deve ser feito com todos os fantasmas: deixar que descansem em paz. O problema é que o fantasma de Marx é teimoso e parece só aceitar seu defunto destino quando o reino capitalista da necessidade der lugar às infinitas possibilidades do reino comunista da liberdade. Quando o tempo não for mais a substância do valor, mas do lazer. Quando a fome e a exploração forem tema de museu. Quando o trabalho deixar de ser considerado a razão principal da existência. Quando a terra sem amos surgir após a luta final. Talvez só assim para Marx deixar de nos assombrar.

Allan M. Hillani é graduado em Direito (UFPR) e mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UERJ). Atualmente é aluno do programa de Doutorado em Filosofia da New School for Social Research em Nova York. É autor de Na urgência da catástrofe: violência e capitalismo (Gramma, no prelo), dentre outros escritos sobre teoria crítica e filosofia política.

 

Editor responsável: Rafael Rezende

 
Relacionados
bottom of page