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  • Marielli Bittencourt

A “NOSTALGIA DA DITADURA” E AS ELEIÇÕES DE 2018


Ato em Brasília pede intervenção militar em abril de 2020 (Foto: AP Photo / Andre Borges)



A eleição presidencial de 2018 suscitou uma série de questões no imaginário político brasileiro, sobretudo um fortalecimento do discurso antipolítico, por parte não só da população, como também dos candidatos. Adiciona-se a isso uma preferência por candidatos anti-establishment, cujas bandeiras levantadas eram de renovação, pureza e anticorrupção. Esses fatores, entretanto, foram acompanhados por um sentimento nostálgico em relação à Ditadura Civil-Militar, elemento explorado pelo então candidato à presidência pelo Partido Social Liberal (PSL), Jair Bolsonaro.


A antipolítica não é um fenômeno exclusivo do pleito de 2018, uma vez que este já vinha se estabelecendo devido a uma crescente desconfiança da população nas instituições políticas. No Gráfico 1, é possível observar o movimento do nível de desconfiança da população em relação ao Governo Federal, ao Judiciário, ao Congresso Nacional e aos partidos políticos, ao longo de três décadas. À exceção do Judiciário, que mantém um baixo nível de desconfiança, as outras três instituições apresentaram um significativo aumento na porcentagem de respondentes que alegam não confiar nas mesmas.


O gráfico apresenta os dados longitudinais da Pesquisa Mundial de Valores (WVS, do inglês World Values Survey) no Brasil. A pesquisa WVS foi criada por Ronald Inglehart, um dos principais cientistas políticos da atualidade, na década de 1980, tendo por objetivo mensurar valores, crenças, atitudes e comportamentos da população. O WVS é a maior pesquisa social empírica do mundo, abrangendo cerca 90% da população do planeta.




Este aumento é ainda mais significativo entre os períodos de 2010-2014 e 2017-2020, que coincidem com as duas últimas eleições presidenciais. Desde a vitória de Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores – PT) para seu segundo mandato, em 2014, e a consequente derrota do candidato Aécio Neves (Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB), a elite brasileira passou a se posicionar mais enfaticamente contra o governo, levantando bandeiras contra a corrupção e, assim, balizando manifestações populares sob o mesmo argumento. Não tardou para que Rousseff sofresse um polêmico processo de impeachment, que culminou com seu impedimento em agosto de 2016, sendo substituída por seu vice, Michel Temer (PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro, atual MDB), tendo, contudo, mantidos os seus direitos políticos (Agência Senado, 2016).


Foi a partir desses eventos que manifestações que pediam por intervenção militar no governo federal e menções em tom nostálgico à Ditadura Civil-Militar começaram a surgir com maior frequência no cenário político brasileiro. Nesse contexto, se sobressai, com maior evidência, o então deputado federal Jair Bolsonaro – anteriormente, Capitão do Exército –, que passa a ter maior atenção por parte tanto de setores da elite brasileira, quanto da população em geral. Assim, é importante ressaltar que a imagem de Bolsonaro, um candidato abertamente de extrema-direita, com relações com setores radicais do Exército e policiais, e que se alia a setores liberais da economia, vinha sendo construída desde antes do período de campanha eleitoral de 2018.


A crise política na qual o Brasil entrou desde 2014 diz muito do modelo de democracia construído no país com o fim da Ditadura Civil-Militar. Assim como uma geração inteira viveu sob um regime autoritário, o mesmo se pode dizer sobre uma geração que nasceu e cresceu durante a democracia, acreditando que a mesma fosse a regra, não a exceção na nossa história política. Com isso, retoma-se um debate sobre a democracia no Brasil e sobre como as instituições democráticas não geram uma cultura política democrática; pelo contrário, o que se vê no país é uma cultura política híbrida, uma vez que conta com elementos autoritários e antidemocráticos (Baquero; Ranincheski; Castro, 2018).


O surgimento dos militares como uma opção viável e quase mágica não é novo e diz muito do sentimento que havia na população antes do próprio golpe de 1964. O sucesso da democratização depende, dentre outras coisas, da modificação da imagem dos militares como defensores últimos do interesse nacional, o que inibe que civis recorram novamente a eles. Nesse sentido, podemos dizer que essa modificação no Brasil falhou, tendo em vista que as Forças Armadas mantiveram o poder de tutela assegurado pela Constituição de 1988 em seu artigo 142 (Brasil, 1988). Luiz Carlos Prestes, importante político brasileiro, foi um dos poucos – senão o único – a jogar luz sobre a questão da tutela militar durante a Constituinte, vendo o poder militar como um “quarto poder” (Prestes, 2018).


O fim da Ditadura Civil-Militar no Brasil significou o ressurgimento de um regime democrático no país – uma novidade para uma geração inteira que viveu sob a égide de um regime autoritário. Entretanto, a forma como ocorreu a transição de um regime para o outro é importante não só para compreender a democracia brasileira, como também para entender a relação do Brasil com a Ditadura Civil-Militar. Ou seja, a forma pela qual ocorre a transição condiciona o tipo de democracia construída. Nesse sentido, as elites autoritárias possuíam controle sob o processo de mudança, ainda que fosse relativo, uma vez que teve fazer concessões à oposição, mas em uma negociação assimétrica entre as partes; daí a transição negociada (O’Donnell; Schmitter; Whitehead, 1986; Shares; Mainwaring, 1986).


Esse processo permitiu que os militares saíssem sem que perdessem total legitimidade e apoio por parte da população. Ademais, a oposição ao regime contava com níveis limitados de mobilização de massa, o que ilustrava não só a força e a legitimidade do regime, como também a tradição de baixos níveis de mobilização popular da cultura política brasileira (Share; Mainwaring, 1986). Além disso, a memória em relação ao passado autoritário não foi trabalhada institucionalmente, de modo que não houve um esforço por parte do Estado em construir uma memória em relação à Ditadura Civil-Militar. Contudo, o fato dessa memória não ter sido trabalhada não quer dizer que essa decisão não tenha sido deliberada. Assim, ao não ser feito o devido debate político e social sobre a Ditadura Civil-Militar instaurada em 1964, abre-se espaço para a reinterpretação sobre o período, havendo inclusive visões que negam a própria existência do Golpe Militar ou mesmo que houve ditadura no Brasil, o que se relaciona diretamente com o conceito de Nostalgia da Ditadura (Bittencourt, 2020).


O conceito de Nostalgia da Ditadura foi construído por Castro (1996), com base no estudo do comportamento dos porto-alegrenses a partir de uma pesquisa survey realizada em 1994. Segundo o autor, a Nostalgia se trata de uma sensação de que o passado é melhor que o presente sem uma justificativa clara ou explicitação do que efetivamente teria sido melhor; no caso do Brasil, esse passado remete ao período da Ditadura Civil-Militar. Esse sentimento de idealização do passado é oportunizado pela incongruência no sistema político. Se incongruência gera instabilidade democrática, uma vez que há uma baixa confiança por parte da sociedade em relação às instituições democráticas (ver Gráfico 1), reforça-se o mito de um passado melhor, sem necessariamente ter sido vivenciado pelos indivíduos ou mesmo efetivamente existido (Bittencourt, 2020; Castro, 1996; 2014).


Tendo como ponto de partida a Cultura Política, Almond e Verba (1970) se referem à socialização política como o processo de internalização de normas e valores políticos da sociedade pelo indivíduo. Também, como a maneira que se formam as atitudes políticas nos indivíduos por meio da transmissão de valores e crenças em um sentido geracional, sendo que estes moldam um determinado tipo de cultura política. Além disso, a socialização política também pode ser entendida como o processo pelo qual os indivíduos adquirem, mantêm ou mudam seus comportamentos políticos (Wasburn; Adkins-Covert, 2017).


A memória também tem influência no processo de socialização e, assim, na construção de padrões de cultura política. De acordo com Pollak (1992), a memória é seletiva, isto é, nem tudo é registrado ou lembrado pelo indivíduo. A memória não é apenas alimentada pelas lembranças individuais, mas de um grupo, constituindo, dessa forma, uma memória coletiva. Esta, por sua vez, também pode ser herdada, ou seja, algo que não diz respeito, diretamente, à experiência de vida desse indivíduo, mas de uma coletividade. O que se entende disso é que a memória é uma construção do presente e que pode ser instrumentalizada de acordo com os interesses dos setores dominantes da sociedade. A questão da memória é especialmente importante no que tange o processo de socialização e o próprio conceito de Nostalgia da Ditadura (Bittencourt, 2020; Costa; González, 2019; Peralta, 2007).


Para verificar a “Nostalgia da Ditadura” como um fator de explicação do voto em Bolsonaro, em 2018, foram analisadas algumas variáveis a partir dos dados da Sétima Onda do WVS no Brasil. Durante o pleito, muito se discutiu a respeito do voto útil, também chamado de voto estratégico, que se trata da estratégia de alguns eleitores em votar no candidato com mais chances de vencer, em detrimento ao candidato que seria a opção natural (Rennó; Hoepers, 2010). Destacaram-se, nesse sentido, os candidatos Ciro Gomes (Partido Democrático Trabalhista – PDT) e o próprio Bolsonaro como opções viáveis ao PT representado pelo candidato Fernando Haddad – lançado pouco menos de um mês antes do primeiro turno das eleições presidenciais. No entanto, o voto útil ainda não estava em pauta no período em que as entrevistas foram realizadas, de maio a julho daquele ano [1]. Assim, é possível afirmar que os respondentes que manifestaram, naquele momento, intenção de voto em Jair Bolsonaro representam a opinião mais autêntica dos seus eleitores, aqueles que estavam mais identificados com as suas propostas desde o início, sem terem sido afetados pela radicalização do clima eleitoral que ocorreu no período mais próximo à eleição.


Com base em cinco variáveis presentes na Sétima Onda do WVS, foi elaborado um índice de Nostalgia da Ditadura, cujo objetivo é mensurar a Nostalgia da Ditadura na população brasileira. As questões utilizadas podem ser verificadas no Quadro 1 abaixo. Estas variáveis, por sua vez, foram analisadas individualmente, cruzando-as com as intenções de voto em Bolsonaro e nos demais candidatos. Dentre elas, destacam-se as variáveis sobre ter técnicos especializados, um governo militar e um sistema político democrático. Todas essas apresentam diferenças significativas entre os que declararam intenção de voto em Bolsonaro e os que tinham intenção de votar nos demais candidatos.


Dentre aqueles que tinham intenção de votar em Bolsonaro, 89% acreditava ser ótimo ou bom ter técnicos especializados no governo. A mesma opinião é compartilhada em 79,8% daqueles que tinham intenção de voto em outros candidatos. Sobre ter um governo militar, os resultados são mais discrepantes, uma vez que 75,3% dos que declaram intenção de voto em Bolsonaro acreditavam que ter um governo militar era ótimo ou bom, enquanto que a mesma resposta é encontrada em 40% dos que tinham intenção de votar em outros candidatos. Em relação ao sistema político democrático, há pouca variação entre as respostas dos que declaram intenção de voto em Bolsonaro e dos que declararam intenção de voto nos demais candidatos: aproximadamente 87% dos respondentes em geral acreditam que é ótimo ou bom haver um sistema político democrático (Bittencourt, 2020).


Esses resultados são importantes, pois convergem com a história e a cultura política brasileira. O imaginário acerca da tecnocracia e dos regimes militares está ligado a uma percepção da população de ausência de corrupção e de maior efetividade no modo de governar. Esses achados encontram, também, base no imaginário existente a respeito da Ditadura Civil-Militar, que obtém coro, sobretudo, entre as pessoas favoráveis a Bolsonaro.


A partir dessas questões, foi construído o índice de Nostalgia da Ditadura, o qual varia de 1 a 4, em que 1 representa o mais nostálgico e 4 o menos nostálgico. O índice foi aplicado em três amostras: geral (todas as pessoas entrevistadas); apenas aquelas que tinham intenção de votar em Bolsonaro; e as que tinham intenção de votar nos demais candidatos. Os resultados obtidos foram, respectivamente: 2,57; 2,38 e 2,58. Observando os resultados encontrados, percebe-se que as médias são próximas. Ainda que o valor médio encontrado entre os possíveis eleitores de Bolsonaro seja menor – e, assim, mais nostálgico –, os resultados não demonstram uma diferença estatisticamente significativa entre os demais.


É importante ressaltar que resultados expressivos nas variáveis sobre governo, intervenção militar e tecnocracia merecem atenção, uma vez que se relacionam diretamente ao passado autoritário brasileiro, o qual é visto de maneira idealizada mesmo por aqueles que não vivenciaram o período militar (42,9% dos brasileiros nasceram a partir de 1988, ou seja, praticamente depois da primeira eleição direta para Presidente da República). Nesse sentido, o sentimento de nostalgia em relação à Ditadura instalada em 1964 foi um determinante no comportamento eleitoral nas eleições presidenciais de 2018, ainda que não explique por completo os votos em Jair Bolsonaro.


O uso do conceito de Nostalgia da Ditadura, tratado aqui como uma teoria de médio alcance [2], tinha por objetivo a explicação de um fenômeno particular, nesse caso, o voto em Bolsonaro. Entretanto, a Nostalgia da Ditadura per se não preenche todas as lacunas que explicam este determinado comportamento eleitoral. Assim, o uso desse conceito permite novas formas de compreender não só a vitória de Bolsonaro, mas também de políticos que, como ele, valeram-se (e valem-se, considerando as eleições municipais deste ano) desse sentimento para construir seu eleitorado.




NOTAS


[1] É importante ressaltar que a etapa brasileira da Sétima Onda da pesquisa foi feita entre os meses de maio e julho de 2018. Assim, os nomes que constam na pergunta referente à intenção de voto para Presidente da República foram selecionados de acordo com os pré-candidatos mais prováveis à época, quais sejam: Jair Bolsonaro, Ciro Gomes, Geraldo Alckmin, Lula e Marina Silva.


[2] Teorias de Médio Alcance (Merton, 1968) seriam intermediárias entre aquelas completamente particulares e as teorias gerais. Esse tipo específico de teoria serve como um guia para as pesquisas empíricas, pois está mais próxima dos dados observados e trata de aspectos limitados, diferentemente das teorias gerais, que estão, por sua vez, mais afastadas dos casos particulares.



REFERÊNCIAS


AGÊNCIA SENADO. "Impeachment de Dilma Rousseff marca ano de 2016 no Congresso e no Brasil". Senado Notícias. 2016. Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/12/28/impeachment-de-dilma-rousseff-marca-ano-de-2016-no-congresso-e-no-brasil


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RENNÓ, Lucio R.; HOEPERS, Bruno. (2010), "Voto estratégico punitivo: transferência de votos nas eleições presidenciais de 2006". Novos estudos CEBRAP, n.86.


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Marielli Bittencourt é Doutoranda e Mestra em Ciência Política pela UFRGS, e bacharela em Relações Internacionais pela mesma instituição. É pesquisadora do World Values Survey Brasil, do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Cultura Política, Estado e Relações Internacionais (CESPRI) e do Grupo de Trabalho Comportamento e Instituições Políticas do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo (CEGOV).

Contato: marielli.bittencourt@ufrgs.br

Como citar esse texto: BITTENCOURT, Marielli. (2020), “A “Nostalgia da Ditadura” e as eleições de 2018”. Horizontes ao Sul. Disponível em https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/11/16/A-NOSTALGIA-DA-DITADURA-E-AS-ELEICOES-DE-2018

Editora responsável: Vitória Gonzalez







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