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  • Taísa Sanches

DIZ-ME ONDE MORAS E EU TE DIREI QUAIS DIREITOS TENS: CIDADANIA REGULADA PELO CEP


Casa remanescente na Vila Autódromo, Rio de Janeiro, em que se lê texto que faz referência ao direito à moradia. Fonte: arquivo pessoal da autora, 2018.



Os estudos sobre cidadania no Brasil quase sempre adjetivam o conceito: “concedida” (Salles, 1992), “partida” (Cerqueira, 1996) e “disjuntiva” (Paiva, 2009) são alguns exemplos. Talvez o mais representativo deles na atualidade seja aquele proposto por Wanderley Guilherme dos Santos, nos anos 1980: cidadania regulada. Buscando compreender as transformações que se deram na ordem social brasileira a partir da reestruturação econômica e social do país desde os anos 1930, a categoria procura demonstrar como a construção do conceito de cidadania no Brasil foi regulada pelo Estado e pelo mercado, a partir do estabelecimento de leis trabalhistas e do reconhecimento de direitos aos trabalhadores.


Segundo o autor, a revolução de 1930 foi um importante fenômeno no rol de edificação da cidadania no país, pois foi a partir desse momento que o Estado passou a agir mais ativamente nas atividades econômicas, preocupando-se em diversificar a produção industrial brasileira. A reorganização do processo acumulativo teria gerado efeitos na ordem social brasileira, criando-se um elo relacional entre trabalho e direitos. Para Santos (1987, p.68), “a cidadania está embutida na profissão e os direitos do cidadão restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo”. Ser cidadão, ou seja, ter seus direitos sociais garantidos por lei e poder participar ativamente da vida política no Brasil, estaria intrinsecamente relacionado ao fato de ser um trabalhador registrado em uma das categorias reconhecidas pelo Estado.


Seguindo este caminho, Santos caracterizou a carteira profissional do trabalhador como uma “certidão de nascimento cívico” (Santos, 1987, p. 69). A esfera pública, nesse contexto, estaria aberta somente à participação da população trabalhadora, sendo que até mesmo as reivindicações sociais eram feitas por esta via, ou seja, por meio de sindicatos de trabalhadores, dos quais só faziam parte indivíduos classificados dentro da ordem ocupacional brasileira. O diagnóstico de nosso autor era claro: a cidadania no Brasil não seria plenamente exercida enquanto não existisse uma visão mais integradora da sociedade, onde todos os indivíduos fossem tidos como merecedores de direitos e capazes de participarem politicamente.


As transformações sociais no país desde que Santos propôs sua chave analítica não foram poucas. A mais importante, no que se refere aos direitos sociais, foi a elaboração da Constituição Federal, em 1988. Com ela nasce, por exemplo, a concepção de direito à moradia como um direito social. A partir da categoria cidadania regulada, no entanto, é interessante pensar como as transformações sociais ocorridas no Brasil, a partir dos anos 1980, institucionalizaram a cidadania no país. Atualmente, uma das formas mais explícitas de regulação da cidadania no país constitui-se pelo local de moradia das pessoas, ou seja, pode-se dizer que nossa cidadania atual é regulada pelo CEP.


Isso porque o acesso a um local de moradia reconhecido constitui-se vetor de acesso a muitos outros direitos. É por meio do comprovante de residência ou de um código postal que se oferece a possibilidade de retirada de alguns documentos, tais como o cadastro de pessoa física. Simbolicamente, o acesso à moradia também oferece a possibilidade de constituição de um conjunto de inter-relações de vizinhança, pertencimento e participação. Nesse sentido, o comprovante de residência vem a ser o documento que garante acesso aos direitos civis, ou a nova certidão de nascimento cívico, como propunha Santos em relação à carteira de trabalho.


As cidadanias no Brasil e sua relação com o local de moradia


Ainda que a ideia de direito à moradia tenha sido uma das garantias previstas na Declaração dos Direitos Universais de 1948 [1], no Brasil o tema começa a ganhar corpo a partir da Constituição de 1988, quando é lançada a ideia de política urbana, que considera a existência de função social para o espaço urbano das cidades. Ou seja, é somente a partir desta legislação que a habitação social passa a ser compreendida como uma das condições para o usufruto da cidade e para o acesso à cidadania.


Antes desta Constituição, a preocupação estatal em construir casas para a população necessitada foi uma questão apresentada especialmente durante o governo de Getúlio Vargas. A opção popular de residências vinha do setor privado, com a construção de vilas operárias, que geravam lucros e eram estimuladas pelo governo através de isenção de impostos. A partir da Revolução de 1930, o governo populista traz a questão da necessidade de oferecer propriedade de moradia e alimentação adequada aos trabalhadores.


Segundo Bonduki, que analisou as origens da habitação social no Brasil, o governo Vargas via, na oferta de moradia popular, uma “condição básica de reprodução da força de trabalho e, portanto, como fator econômico na estratégia de industrialização do país” (Bonduki, 2011: 73). Além disso, havia o entendimento de que a oferta de moradia seria essencial para a criação de trabalhadores “padrão”, que significavam sua “base de sustentação política”.


Nota-se que as políticas habitacionais deste período são direcionadas aos trabalhadores assalariados, ou seja, o direito à habitação, assim como aos serviços sociais básicos, era destinado àqueles com carteira assinada. Nos anos 1940, foram construídos 618 condomínios financiados pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões, somente no Rio de Janeiro, antiga capital do país (Bonduki, 2011: 105). O beneficiamento de trabalhadores formais versus a forma como era tratada a habitação dos sem teto mostra “uma linha divisória entre os cidadãos com direitos sociais, entre os quais os trabalhadores assalariados, e os subcidadãos, que não tinham lugar na nova ordem social” (Idem: 109). A todos aqueles que não possuíam trabalho formal, especialmente aos moradores de favela, restaria uma educação civilizadora – dada por meio da moradia em locais dentro da ordem – que os prepararia para a vida social.


Em 1964, o governo federal ditatorial cria o Banco Nacional de Habitação (BNH), responsável por financiar a construção de habitações populares de forma a “resolver o ‘problema-favela’ e ‘aquecer a economia’”, unindo, dessa forma, “a fome com a vontade de comer” (Brum, 2012: 85). A financeirização da moradia popular foi, desde então, uma constante no país, sendo que diversas políticas públicas mantiveram propostas similares.


Somente em 2001, com a declaração do Estatuto da Cidade, novos caminhos começaram a ser trilhados a partir do respaldo constitucional a uma nova maneira de realizar o planejamento urbano, que visava garantir o cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbana. Isso significa o estabelecimento de “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental” (art.1º). A partir de então, o debate acerca do direito à cidade passa a tomar corpo no Brasil, e a relação entre local de moradia e acesso à cidadania passa a fazer parte da pauta estatal de forma mais contundente.


A eleição de Lula, do Partido dos Trabalhadores, em 2002, ampliou as esferas de participação pública em torno do tema, e a criação do Ministério das Cidades, em 2003, possibilitou a instauração do Conselho Nacional das Cidades, importante esfera de discussão acerca da agenda urbana no país. Como ressalta Raquel Rolnik (2009), o Conselho foi central na formulação e negociação de políticas, uma vez que todos os setores governamentais e a sociedade civil estavam representados ali. A representação dessas esferas era decidida por meio de eleições realizadas em conferências nacionais, sendo que a de 2003, responsável por eleger o Conselho Nacional das Cidades, “foi precedida por 1.427 conferências municipais, 185 conferências regionais e 27 estaduais, envolvendo 3.457 municípios” (Rolnik, 2009: 35).


A política habitacional também foi incentivada durante os governos de esquerda, sendo que os gastos com habitação de interesse social foram impulsionados com recursos federais e a gestão localizada baseada em definições dos conselhos gestores. Em 2009, o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) é instaurado, incentivando a construção de moradia voltada principalmente aos mais pobres. O Programa, porém, sofreu diversas críticas durante os anos de execução, principalmente pelo caráter relativo à financeirização, uma vez que transferia ao mercado a execução das obras e administração dos empreendimentos. De fato, os governos de esquerda impulsionaram o caráter mercantil dos programas de moradia, revelando a relação entre política pública de habitação social e mercado existente no país, despontando o que Shimbo (2010) denomina como habitação social de mercado.


O Programa Minha Casa Minha Vida previa, em sua criação, a adesão aos princípios do Estatuto da Cidade [2], sugerindo que as empreiteiras responsáveis pela construção dos conjuntos habitacionais priorizassem a construção em áreas urbanas consolidadas, por exemplo. Por sua vez, o Estatuto da Cidade recomenda que os municípios sigam o zoneamento previsto em seu plano diretor, e esses muitas vezes sequer possuem regulamentação própria. Ou seja, as leis se entrecortavam, e a execução do PMCMV como idealizado foi obstruída, de forma que municípios e empreiteiras encontraram nele possibilidades de maiores ganhos de capital.


Deve-se reconhecer, no entanto, que o PMCMV significou um avanço frente aos programas existentes anteriormente, mas a abertura que oferecia ao capital privado levou-o ao caminho da financeirização, e o acesso à moradia não foi generalizado de forma a reconhecer a parcela mais pobre da população como possuidora de direitos. Diversas análises apontaram o desencontro entre crescimento urbano e políticas públicas efetivas, fato que contribuiu para o acirramento da desigualdade social nas cidades brasileiras. Rolnik (2009), especificamente, mostra que grande parte da população não tem acesso ao mercado formal de terras ou moradia, recorrendo à informalidade e à irregularidade. Segundo a autora, é possível afirmar que, no país, a precariedade urbanística atinge 40% dos domicílios, produzindo um fenômeno de “cidade fora da cidade”, ou seja, espaços desprovidos das infraestruturas, equipamentos e serviços que caracterizam a urbanidade.


Nos anos posteriores ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff, grandes retrocessos marcaram a política habitacional e fundiária do país. Parte considerável da legislação instaurada pelos instrumentos mencionados acima foi revogada, inaugurando um período marcado pela “inflexão ultraliberal” no país (Santos Jr., 2019) e pelo acirramento da financeirização da habitação social, ou seja, pela “transmutação da habitação em ativo financeiro” (Rolnik, 2015: 13).



***


Veena Das e Deborah Poole (2004), ao analisarem a relação que o Estado estabelece em suas margens, notam que uma das formas de manutenção de parte da população afastada da participação política é justamente o tratamento dado aos documentos. Segundo as autoras, a constituição do Estado moderno está baseada em práticas escritas, sendo os documentos de identificação parte do controle estatal sobre os indivíduos, populações e territórios. Desta forma, no mundo hodierno, os direitos estão intimamente relacionados à posse de documentos que comprovam a relação indivíduo-Estado, e aqueles que não os possuem fazem parte das margens e se encontram na fronteira da legalidade.


Ao levantar a questão da regulação da cidadania pelo CEP, pode-se apontar o vazio legal daqueles que não possuem comprovante de moradia, ou que vivem em locais discriminados, fato que diferencia moradores de bairros de elite e marginalizados. No Rio de Janeiro, por exemplo, se tomamos a quantidade de equipamentos públicos de cultura nas áreas nobres da cidade, veremos que ele ultrapassa em muito a quantidade daqueles localizados na periferia da cidade. Além disso, a urbanização se dá de forma distinta dependendo do bairro da cidade, sendo que muitas sequer contam com saneamento básico.


Nas favelas das grandes cidades brasileiras, muitas ruas não são legalmente reconhecidas por lei, o que distancia seus moradores de serviços garantidos apenas àqueles que têm documentos comprobatórios de endereço. As pessoas que vivem nestes locais são obrigadas a conseguir comprovantes falsos ou a depender de micropoderes locais para ter acesso aos direitos. A não legalização destes espaços as afasta do que é considerado cidade de fato, e isso leva a diversos outros problemas: falta iluminação pública de qualidade, falta transporte público, falta saneamento. A ausência de reconhecimento do local de moradia como existente na cidade significa o afastamento do exercício da cidadania: não ter CEP ou viver em um CEP discriminado significa não ser reconhecido como cidadão.


O histórico de políticas habitacionais do Brasil não foi capaz de democratizar o acesso à moradia de forma a garantir que o acesso a direitos não esteja condicionado ao local onde se vive. Ainda que programas habitacionais, tais como o PMCMV tenham oferecido o acesso a unidades habitacionais, a discriminação e desigualdade relacionadas ao local de moradia ainda não foram solucionadas, uma vez que tais projetos não caminharam de mãos dadas a outros serviços, oferecendo moradias não reconhecidas como parte da cidade.


Parece fundamental voltar à questão da adjetivação de nossa cidadania, proposta pelo cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, e perguntar o que significa cidadania no Brasil atual. Esse texto, prestando uma pequena homenagem ao referido pensador, procurou apontar o caminho de análise de políticas habitacionais como um dos possíveis à realização desta tarefa.




NOTAS


[1] Artigo XIII 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado.


Artigo XXV 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.


[2] Sua função é garantir o cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbana, o que significa o estabelecimento de “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.” (art.1º).



REFERÊNCIAS


BONDUKI, Nabil. (2011), Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria. São Paulo, Estação Liberdade.


BRUM, Mario. (2012), Cidade Alta: História, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Ponteio.


CERQUEIRA, Marcello. (1996), Cidadania Partida: a Mácula do Rio. Rio de Janeiro, Revan.


DAS, Veena e POOLE, Deborah (ed.). (2004), Anthropology in the Margins of the State. New Mexico, School of American Research Press.


PAIVA, Angela R. e BURGOS, Marcelo Baumann (org.). (2009), A escola e a favela. Rio de Janeiro, Pallas.


ROLNIK, Raquel. (2009), “Democracia no fio da navalha: limites e possibilidades para a implementação de uma agenda de reforma urbana no Brasil”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v.11, n.2.


ROLNIK, Raquel. (2015), Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo, Boitempo.


SALES, Teresa. (1992), Trama das desigualdades, drama da pobreza no Brasil. Tese (Livre-Docência), Departamento de Sociologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, Campinas.


SANTOS, Wanderley Guilherme. (1987), Cidadania e justiça. Rio de Janeiro, Campus.


SANTOS JR., Orlando. (2019), “Participação e Insurgências: ideias para uma agenda de pesquisa sobre os movimentos sociais no contexto da inflexão ultraliberal no Brasil”. E-metropolis, ano 10, n.39.


SHIMBO, Lucia Zanin. (2010), Habitação social, habitação de mercado – a confluência entre Estado, empresas construtoras e capital de mercado. Tese (Doutorado), USP, São Carlos.




Taísa Sanches é pesquisadora em Ciências Sociais na PUC-Rio. Integra o Grupo de Estudos Direitos, Reconhecimento e Desigualdade (GEDRED) na mesma universidade.

E-mail: taisasanches@gmail.com

Como citar esse texto: Sanches, Taísa. (2020), “Diz-me onde moras e eu te direi quais direitos tens: cidadania regulada pelo CEP”. Horizontes ao Sul. Disponível em https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/11/03/DIZ-ME-ONDE-MORAS-E-EU-TE-DIREI-QUAIS-DIREITOS-TENS-CIDADANIA-REGULADA-PELO-CEP

Editora convidada: Caroline Rocha dos Santos







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