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  • Camilo López Burian

PANDEMIA, INCERTEZAS E POSSÍVEIS MUDANÇAS GLOBAIS




No início de março, pensei que a Covid-19 faria parte de um parágrafo de um livro de história global, onde uma série de doenças originadas na Ásia no final do século XX e no início do século XXI seria delineada[1]. Mas não achei que o novo coronavírus fosse algo especial. Tampouco que poderia funcionar como um catalisador para a crise da globalização que começou em 2008 e teve sua expressão em nossa região com o fim do ciclo das commodities.


Nesse contexto, o multilateralismo, a integração regional, a coordenação política e a cooperação internacional são postas à prova. As direitas antiglobalistas também são desafiadas e com elas os seus líderes. Boris Johnson, Donald Trump e Jair Bolsonaro, por exemplo, ocuparam posições que privilegiaram a manutenção da atividade econômica sobre os efeitos negativos à saúde da população, combinados com discursos que questionaram o conhecimento científico. O capitalismo mostra desigualdades nas sociedades, colocando no centro o debate necessário sobre o papel do Estado. Perder um emprego, cuidar da saúde ou não conseguir um meio de vida diário é um pesadelo potente em estados onde o mercado é o grande alocador de recursos, também sob o governo das direitas liberais e globalistas. As decisões tomadas gerarão impactos políticos em vários níveis e muitas discussões permanecerão abertas.


No sábado, 14 de março, já com a chegada da Covid-19 no Uruguai, a analogia com o final da Idade Média começou a se estabelecer na minha cabeça. O que estava acontecendo na Ásia e na Europa era preocupante. Mas algum raciocínio diferente surgiu quando a pandemia atingiu a porta mais próxima. Foi aí que pensar na peste negra do século XIV passou a fazer sentido para a redação do presente texto. Observar eventos e situações de uma perspectiva histórica, com longa duração, é sempre um exercício necessário que amplia nosso olhar.


Esta peste transformou aspectos chave das mentalidades de homens e mulheres da Idade Média e fez parte de um processo que deu lugar à Idade Moderna (séculos XVI a XVIII). O modo de viver, conceber doenças e perceber a morte sofreu mudanças que impactaram em múltiplas dimensões da vida humana na Europa. A ciência hoje é um escudo melhor e as comunicações nos trazem mais informações do que podemos processar. Em tempo real, vemos figuras, casos e cenas da vida cotidiana durante a pandemia. Essa é uma grande diferença com o século XIV. Naquele momento, alguns podiam ser desconectados e não visualizar a situação, vivendo durante tempos de crises de saúde pública, ignorando ou se distanciando do que estava acontecendo.


Em Los fundamentos del Mundo Moderno, um texto clássico do final da década de 1960, os historiadores italianos Ruggiero Romano e Alberto Tenenti iniciam o capítulo da crise do século XIV com uma análise da "fratura demográfica" que significou o flagelo da "morte negra" (a peste bubônica), que teve seu ponto mais alto entre 1347 e 1353 e matou pelo menos um terço da população europeia. Obviamente, o impacto da doença é incomparável em termos de óbitos e também em termos de extensão de sua disseminação, uma vez que o mundo moderno ainda não havia interligado todos os seus continentes.


Por outro lado, existem algumas semelhanças do contexto passado com o presente. A peste negra se originou na Ásia, transmitida por pulgas de ratos a humanos. A expansão dos mongóis sobre os limites da Europa, seu controle sobre a Rota da Seda e os ratos que viajavam em navios europeus para portos na atual Itália, França e Espanha, passando pela atual Turquia, facilitaram a chegada da praga da Ásia para a Europa. Hoje, outra zoonose viaja pelo planeta, chegando da Ásia à Europa e se expandindo pelo mundo através das rotas de comércio e comunicação, mas agora em tempos de globalização, ou como veremos mais adiante, de crise da globalização.


A praga do século XIV foi além de fatores demográficos e provocou mudanças estruturais. Existem até análises históricas que a associam ao fim do Império Romano do Oriente (Bizâncio), por exemplo. Em toda a Europa, a economia e o modo de produção registraram mudanças que impactaram a estrutura social e a discussão sobre a distribuição do poder político. O historiador francês Fernand Braudel caracterizou as mentalidades como prisões de longo prazo. Mas nesse período começaram a mudar, porque, como afirmou o historiador francês Pierre Vilar, as crises não são menos agudas nas consciências do que nos fatos.


A praga não era o ovo da serpente, mas pode ser entendida como um catalisador que, interagindo com vários fatores, moldou a crise do século XIV, que afetou a economia, a sociedade, as estruturas políticas e culturais da Europa. Assim começou o naufrágio de um mundo e seus valores, algo que só pode ser visto no longo prazo. Diante da crise, as reações foram múltiplas. Os flagelantes, posteriormente declarados hereges pelo Papa, percorreram a Europa se autoflagelando, entre cantos e orações. Embora a rendição aos prazeres também tenha sido outra resposta à suposta iminência do fim, seja na vida individual ou na época. O Cristo todo poderoso das representações artísticas da Idade Média deu lugar ao Cristo sofredor do Renascimento. Os julgamentos finais de Michelangelo e Bosco seriam uma das várias obras que capturaram o espírito da época. As trágicas imagens de Albrecht Dürer ou a construção icônica da morte na pintura de Pieter Brueghel, o Velho, foram representações dessa crise. A angústia deu lugar a questionar a Igreja. Lutero iniciou a reforma protestante em 1517 e Inácio de Loyola, em nome do Papa, começou a luta contra a dissidência. A cristandade seria dividida, a partir de agora, em diferentes visões sobre a relação entre homem e divindade.


O ser humano, o indivíduo, protagonista do tempo, redefiniu seu lugar no universo e seu relacionamento com Deus. O antropocentrismo como motor da filosofia humanista e as mudanças nas ciências têm raízes na crise do século XIV. Alguns conhecimentos científicos começaram a delinear diversas características mecanicistas, que dialogavam e realimentavam diferentes campos intelectuais, como a filosofia política. Os monarcas, de reinos ricos pela expansão comercial que ligava o globo, estavam explorando formas de unificação do poder que deram origem às monarquias absolutistas como um estágio de reconfiguração do poder aristocrático, enquanto a burguesia, engendrada em contradição, acumulava capital e preparava suas pás de coveiros.


As grandes viagens, a acumulação de capital, o comercialismo e o desenvolvimento das comunicações estavam "conectando" o globo e, agora, constituindo um espaço interconectado. A expansão material e cultural europeia deixou seus legados para o presente, graças ao processo de globalização. A crise do século XIV não apenas transformou mentalidades, mas também estruturas materiais que forjaram o mundo moderno. Os tempos de crise que estamos enfrentando podem ter impactos importantes nas mentalidades, resultado da pandemia. Mas esse fenômeno é combinado com um processo de longo prazo, que é a crise da globalização, e que envolve mudanças estruturais muito significativas.


A praga de 1348, como é geralmente conhecida em termos históricos, não era imprevisível. Nem a atual pandemia. A mesma é entrelaçada em ciclos que ligam epidemias e fome. O novo coronavírus atinge o planeta após a crise de 2008, que afetou profundamente as economias dos principais nós do capitalismo contemporâneo.


Como lembra Rafael Mandressi, historiador da medicina uruguaio, uma epidemia é a visita de uma doença a um demos. E ao visitar um demos, torna-se um evento que exige decisões e, portanto, torna-se um problema político. A pandemia é democrática porque pode alcançar a todos, mas essa ideia é ilusória. As desigualdades são acentuadas neste contexto. Viver em um apartamento na zona sul do Rio de Janeiro não é o mesmo que morar numa comunidade periférica na mesma cidade. Basta ler o Decamerão de Bocaccio (c.1351-1353), ou ver a versão cinematográfica - numa chave dramática erótica - de Pier Paolo Pasolini, para pensar como a quarentena é vivida diferentemente de acordo com o contexto social em que a doença espreita. Inventada em resposta à praga do século XIV, a quarentena, hoje e ontem, pode ser um privilégio, dependendo das desigualdades prevalecentes nas sociedades. Enquanto alguns podem ficar em casa, outros têm que ir trabalhar, enfrentam dificuldades ou perdem o emprego. Quando o Estado não age suficientemente, o mercado assume uma centralidade que deixa exposto os mecanismos mais desumanos do capitalismo. Estar ciente disso e agir em conformidade são imperativos.


Ao exigir decisões políticas, o enfrentamento da doença expõe as relações entre política e medicina. O problema é um problema social, e não apenas médico. Não se pretende aqui abordar esses aspectos, deixemos isso para aqueles que dedicam seu tempo ao estudo dessas questões. Vamos refletir como algo que parece tão técnico é, também e como tudo, uma questão política. O ato de governar é levar em consideração vários fatores ao tomar decisões. A saúde, a economia, as desigualdades de classe, raça e gênero - e suas interseccionalidades -, entre outros aspectos, são incluídas ou excluídas e ponderadas com base em ideias, interesses e regras do jogo sobre os processos de tomada de decisão. A tensão entre a liberdade individual e o bem comum aviva o debate sobre controle social. Os tempos de crise desafiam a ordem social e seus fundamentos.


No século XIV, durante e depois da praga, a incerteza foi transformada no espírito da época. A provisoriedade e instabilidade foram acompanhadas pelo medo ao contágio e uma ênfase individual que separava um dos outros. Os ciclos de fome e epidemia geraram degradação nos costumes. A irracionalidade prevaleceu, dando origem aos pogroms: ódio por razões étnicas com sobreposições religiosas, que muitas vezes escondiam o ódio de classe, se esse anacronismo é permitido, o que levou à perseguição do estrangeiro - judeu, mouro etc. - identificado como origem dos problemas, ou como quem tem o que o outro deveria ter ou receber porque "verdadeiramente" deveria ter ou receber. A xenofobia e outros sinais desse tipo de ódio, cujo coração contém uma enorme série de medos, estão presentes em nossos tempos de crise da globalização, e a pandemia pode catalisá-los.


José Antonio Sanahuja, internacionalista e cientista político espanhol, afirma que desde 2008 o sistema internacional está passando por uma mudança no ciclo histórico. Seguindo o caminho de Robert Cox e Susan Strange, partindo da teoria crítica neogramsciana das relações internacionais e da economia política internacional, ele analisa a estrutura do sistema internacional como uma realidade diferenciada, configurada por aspectos materiais, instituições, normas, ideias e conhecimentos, sendo o marco de ação que constitui os atores e facilita ou restringe sua capacidade de ação. A crise da globalização é uma grande transformação, no sentido de Karl Polanyi, que afeta as bases econômicas e sociais globais no marco de um questionamento da ordem política nacional e internacional associada. Dessa maneira, estaríamos experimentando um estágio de mudança estrutural que terminaria o estágio que se seguiu ao final da Guerra Fria.


Que características Sanahuja utiliza para entender a crise? Nesse contexto, há mudanças no poder estrutural. Mas não como supõem os realistas - a corrente principal nas relações internacionais - que pensam num sistema internacional anárquico em que as interações são guiadas por poder e interesse, propondo que estamos caminhando para um confronto entre a China e os Estados Unidos. Pelo contrário, o caminho seria rumo a um mundo multicêntrico. Por exemplo, vale a pena pensar no reposicionamento da Rússia na última década. A interdependência gera custos para o confronto entre as grandes potências. Um ciclo econômico e tecnológico de produção transnacionalizada está esgotado, mostrando seus limites ecológicos e sociais. Enquanto isso, emergem atores antiglobalização, principalmente da direita, questionando a ordem liberal internacional que caracterizou a governança multilateral global construída após a Segunda Guerra Mundial.


Os perdedores da globalização hoje sofrem as consequências mais dramáticas da doença. Aqueles que não veem suas expectativas satisfeitas, aqueles que não acreditam na política e protagonizam reações à diversidade social, cultural e de identidade de gênero, por exemplo, fazem parte daqueles que são impactados pela epidemia. Alguns desses insatisfeitos são aqueles que aderiram aos fenômenos políticos das direitas neopatriotas que questionam a ordem liberal internacional (a ordem da globalização), que exigem um "retorno" aos valores tradicionais e reagem ao avanço de novas agendas de direitos e que, em alguns casos, eles até mostraram posições que são marcadamente opostas ao discurso científico e à governança multilateral sobre questões de saúde global. Eles estão insatisfeitos ou decepcionados. Ativados politicamente, hoje estão neste cenário de incerteza e vislumbrando os profundos impactos econômicos e sociais da crise, que sem dúvida serão também políticos e culturais.


A crise de globalização que vivemos como demos globais recebe hoje a visita do coronavírus. As saídas possíveis para essa situação geram tensões no eixo onde os atores se posicionam. Líderes políticos e intelectuais traçam caminhos em que alguns escolhem soluções nacionalistas e autárquicas, enquanto outros alertam para a importância do multilateralismo, cooperação, solidariedade e internacionalismo. Acadêmicos de prestígio veem diversos cenários no futuro. Por exemplo, enquanto a internacionalista argentina Diana Tussie vê um aumento na resistência à globalização, o cientista político brasileiro Dawisson Belém Lopes pensa em um cenário a meio caminho entre saídas nacionalistas e globalistas. A coincidência parece ser que a globalização, como a conhecemos, passa por mudanças importantes nesse contexto.


A pandemia testa os atores emergentes da crise da globalização iniciada em 2008: as direitas neopatriotas, anti-globalistas, populistas, nacionalistas e os reacionários. Hoje, no Reino Unido e nos Estados Unidos, eles estão enfrentando uma crise em que sua retórica minimizadora da situação pode ter custos. Na Hungria, Viktor Orbán avançou na consolidação de um governo iliberal, que concentrou o poder em suas mãos, suspendeu as eleições e restringiu as liberdades individuais no contexto da crise da saúde, tornando-o o primeiro membro não democrático da União Europeia, segundo parâmetros que medem a democracia. Em nosso continente, o Brasil está passando por uma profunda crise política no contexto da pandemia, e a possibilidade de colapsos institucionais não está fora do cardápio, especialmente se as vozes contraditórias de suas elites econômicas forem atendidas. As tensões entre os três poderes da República, o avanço das Forças Armadas no governo e o isolamento do presidente Jair Bolsonaro, que continua em uma linha de conduta que questiona e rejeita a ciência, atitude que deve ser diferenciada de uma possível abordagem crítica do conhecimento científico, são exemplos disso.


A praga foi uma peça na configuração da crise do século XIV, que deixou a Idade Média para trás e colaborou na gênese da modernidade. A pandemia de 2020 pode atuar como um catalisador da crise da globalização ou como um choque externo aos processos políticos que essa situação apresenta. A questão, em curto prazo, é o que acontecerá com as direitas antiglobalistas. A pandemia as fortalecerá ou enfraquecerá? Isso criará mais oportunidades de ação ou maiores restrições? E, no longo prazo, a pergunta pode ser: quanto a pandemia nos afetará em um nível estrutural? Antonio Gramsci alertou que: “O velho mundo está morrendo. O novo leva tempo para aparecer. E nesse claro-escuro surgem os monstros”. A pandemia pode acelerar a transição para um estágio pós-globalização, como propõe Sanahuja, no sentido do fim da globalização que conhecíamos. Um estágio de mais fragmentação e reorganização das cadeias produtivas e mercados, além de maior integração da economia digital. O tempo parece estar se abrindo para um estágio de maior incerteza e, portanto, mais capacidade de ação. Hora de repensar o papel do Estado, as desigualdades, a alocação orçamentária para saúde e bem-estar, e para pesquisa e desenvolvimento, entre outros aspectos. A questão é se essas tarefas são assuntos dos Estados ou exigem repensar a cooperação internacional e a governança global. Será fundamental observar quais atores políticos serão fortalecidos ou enfraquecidos, de acordo com seu sucesso ou fracasso diante da pandemia e sua capacidade de construir narrativas sobre isso. Nosso tempo atual é o claro-escuro, enquanto um ciclo histórico parece estar mudando. Espero que possamos repensar uma nova forma de internacionalismo, mais solidária e humana, mas isso é apenas um desejo. Enquanto isso, a pandemia está em andamento.



NOTAS


[1] Este texto é uma versão adaptada da original, publicada em espanhol no La Diaria em 18 de abril de 2020. Disponível em: https://ladiaria.com.uy/articulo/2020/4/pandemia-incertidumbres-y-posibles-cambios-globales/

[2] A informação é do V-Dem. Disponível em www.v-dem.net.







Camilo López Burian é Professor Adjunto do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade da República (Uruguai). Pesquisador Nível 1 do Sistema Nacional de Pesquisadores da Agência Nacional de Pesquisa e Inovação do Uruguai. Seus principais campos de pesquisa são: análise da política externa, política externa comparada, relações internacionais, direitas antiglobalistas e política internacional.

Contato: camilo.lopez@cienciassociales.edu.uy

Twitter: @CamiloLpzBrn

Como citar esse texto: BURIAN, Camilo López. (2020), "Pandemia, incertezas e possíveis mudanças globais". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/06/08/PANDEMIA-INCERTEZAS-E-POSSIVEIS-MUDANCAS-GLOBAIS

Revisão: Talita Tanscheit

Editora Responsável: Marcia Rangel Candido











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