top of page
  • Luiz Augusto Campos; San Romanelli Assumpção

A DIMENSÃO MORAL DO ISOLAMENTO: CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DE JOHN RAWLS PARA PENSAR AS RESPOSTAS À PAN



A pandemia de Covid-19 deu novo fôlego às batalhas ideológicas contra o Estado mínimo, o neoliberalismo e as supostas virtudes do livre mercado[1]. Depois de décadas de expansão de retóricas e práticas neoliberais, aceleradas pelo recente advento da chamada “nova direita”, políticos e intelectuais outrora identificados com o livre mercado e o Estado mínimo voltam a reconhecer a relevância da intervenção estatal na economia. As razões parecem óbvias: a pandemia não apenas matará e debilitará milhões de pessoas no mundo como produzirá uma das maiores crises econômicas da modernidade. Ademais, ela já está causando uma sobrecarga do sistema de saúde de todos os países e a única forma conhecida de se evitar seus efeitos é o isolamento social por meio de confinamento doméstico, que, por sua vez, paralisa atividades econômicas, gerando falência de empresas, falência de empreendedores individuais, desemprego, aumento da pobreza absoluta e da fome e grave crise econômica, existindo até o fantasma da depressão.


É nesse contexto que defesas do keynesianismo e do Estado de bem-estar social voltam à voga. Contudo, se as políticas econômicas keynesianas foram historicamente coincidentes com o surgimento e consolidação dos Estados de bem-estar social, suas bases teóricas são em grande medida econômicas e não propriamente morais. Segundo o keynesianismo, o Estado deveria intervir no mercado e redistribuir bem-estar para a população porque o capitalismo tende a crises cíclicas que podem reforçar suas contradições ao ponto de inviabilizá-lo. Logo, trata-se de uma teoria econômica eminentemente preocupada em garantir a autorreprodução do mercado capitalista contra as suas tendências à crise.


Todavia, as demandas por intervenções redistributivas e de proteção social por parte do Estado não se justificam apenas por motivos econômicos, mas também morais e políticos. Por razões complexas, momentos de crise como este reforçam a preocupação com nossa autopreservação, sobrevivência e direitos humanos (o direito à vida é, por excelência, um direito humano), mas também instam reflexões sobre o bem-estar geral, qualidade de vida e justiça social. O filósofo estadunidense John Rawls se tornou um dos teóricos políticos mais relevantes do século XX justamente por refletir sobre esse dilema constitutivo do liberalismo: como justificar, em termos morais, a busca pelos direitos, oportunidades e qualidade de vida de todos a partir de uma concepção de mundo liberal calcada na liberdade individual? Em sua época, e em alguma medida, até hoje, esta questão era pensada em termos que provêm dos teóricos denominados “utilitaristas”. Abstraindo as profundas diferenças entre eles, o princípio geral dessa corrente filosófica propala que uma sociedade seria mais justa quanto maior a felicidade, utilidade e bem-estar individuais agregados.


Esse raciocínio moral utilitarista está na base, por exemplo, da proposta de flexibilização das medidas de distanciamento social (ou isolamento vertical) propostas por Jair Bolsonaro. Dessa perspectiva, não seria justo condenar toda a população a uma quarentena total e seus efeitos econômicos deletérios apenas para garantir a vida de uma minoria, composta mormente por idosos e pessoas com comorbidades. Por isso, valeria a pena aceitar uma quarentena seletiva e um risco maior de mortes em troca da manutenção da atividade econômica e da liberdade individual da maioria.


Um dos esforços de Rawls é justamente evidenciar as contradições internas dessa moral utilitarista e, por isso, sua teoria pode ser utilizada para entender a dimensão moral das respostas dadas à atual pandemia. Segundo o utilitarismo liberal, a liberdade em perseguir a satisfação dos desejos e interesses individuais deveria ser o valor fundante da vida humana. Mas se é assim, Rawls se indaga: em qual tipo de sociedade o indivíduo racional e auto interessado das teorias utilitaristas preferiria viver? Segundo ele, esse indivíduo abstrato pressuposto pelas teorias utilitaristas contraditoriamente não escolheria viver em sociedade regida pelos princípios do utilitarismo. Só escolheríamos viver numa sociedade que proporcionasse a maior quantidade total de felicidade ao maior número de seus membros, máxima utilitarista, se já fizéssemos parte do grupo de indivíduos “felizes”, “privilegiados” ou “satisfeitos” dessa sociedade. Essa escolha seria injusta e imoral, já que expressa as vantagens arbitrárias que parte da população tem.


Para demonstrar analiticamente essa contradição interna ao utilitarismo, Rawls recorre em sua principal obra, Uma Teoria da Justiça, a um artifício teórico totalmente hipotético, próprio dos contratualismos: a chamada “posição original”. Uma escolha justa dos princípios de justiça que orientassem a sociedade só poderia ser feita por indivíduos que não soubessem suas posições no interior dela (se pobres ou ricos, dominantes ou dominados, sortudos ou azarados, brancos ou não brancos, homens ou mulheres, heterossexuais ou de sexualidades dissidentes, cristãos, islâmicos ou judeus etc.). Nessa posição original, indivíduos auto interessados[2] temeriam nascer em situações desvantajosas ao mesmo tempo em que buscariam um arranjo social que lhes proporcionasse máxima liberdade de escolha. Destarte, eles escolheriam uma sociedade que proporcionasse a maior liberdade para todos desde que fossem minimizadas as desigualdades de pontos de partida na sociedade e os efeitos do azar em suas oportunidades, um arranjo liberal e igualitário ao mesmo tempo, ou seja, desde que fossem maximizadas as oportunidades e liberdades efetivas das piores posições sociais (o chamado “princípio maximin”).


Voltando ao exemplo da pandemia, indivíduos auto interessados dificilmente escolheriam na posição original viver em uma sociedade cujos valores justificassem políticas de isolamento vertical, pois eles não saberiam previamente sua condição demográfica: poderiam ser idosos ou possuir comorbidades, poderiam ser mais pobres e desguarnecidos, poderiam se infectar ou não com o vírus, poderiam ser sortudos (ou ex-atletas supostamente imunes) ou azarados. Logo, uma das contribuições da chamada teoria da justiça como equidade de Rawls é desmontar internamente o utilitarismo como teoria liberal e individualista da justiça: mesmo indivíduos racionais e egoístas não podem defender uma sociedade desigual regida por um liberalismo de Estado mínimo.


Nosso argumento aqui é que a pandemia generaliza, ao menos em um primeiro momento, os riscos humanos para além de grupos mais vulneráveis. Ainda que as classes abastadas consigam, com o tempo, converter seus privilégios econômicos em maiores proteções em relação ao vírus, tal conversão é limitada. Ainda que desigualmente, todos, sem exceção, serão atingidos em maior ou menor medida pela pandemia e seus efeitos econômicos. Logo, momentos como o atual evidenciam que uma preocupação com certo nível de igualdade e bem-estar sociais não se justifica apenas por uma compaixão genérica, mas também para a própria preservação das liberdades individuais básicas.


Correndo o risco de incorrer em uma elucubração assistemática ou excessivamente sentimental, não nos parece gratuito que a própria vida de Rawls tenha sido marcada pelos efeitos de desastres similares ao atual. Como destaca Thomas Pogge, sua trajetória foi acompanhada pelo sentimento de possuir uma “sorte macabra” intimamente relacionada ao seu senso de justiça pessoal. Com essa expressão, ele se referia a uma série de eventos em que Rawls teve a “sorte” de escapar da morte, mas que implicaram o azar de muitos de seus pares. Apesar de ter escapado de bombardeios e incêndios, são os eventos de sua infância que melhor traduzem o componente macabro de sua sorte: dois de seus irmãos mais jovens faleceram por doenças respiratórias e contagiosas contraídas do próprio Rawls:


O primeiro desses incidentes ocorreu em 1928, quando Jack [apelido de Rawls] ficou gravemente doente. Apesar de Bobby, vinte e um meses mais novo, ter sido alertado para não entrar no quarto de Jack, ele ainda assim o fez algumas vezes para fazer companhia ao irmão. Logo, os dois filhos estavam deitados na cama com febre alta. Por conta de um diagnóstico inicialmente errado do médico da família, muito tempo passou até que fosse finalmente descoberto que ambos estavam sofrendo de difteria. O diagnóstico correto e a antitoxina chegaram tarde demais para salvar Bobby. Sua morte foi um choque severo para Jack e pode ter (como sua mãe pensava) desencadeado sua gagueira, que foi uma grave deficiência (embora retrocedida) pelo resto de sua vida. Jack se recuperou da difteria, mas logo no próximo inverno, enquanto se recuperava de uma cirurgia de amígdalas, pegou uma pneumonia severa, que logo contaminou seu irmão Tommy. A tragédia do ano anterior se repetiu. Enquanto Jack se recuperou lentamente, seu irmão mais novo morreu em fevereiro de 1929 (Pogge, 2007, p. 5-6).


Não pretendemos aqui deduzir a concepção filosófica do autor desses eventos biográficos trágicos, mas apenas chamar a atenção para o fato de que eles servem de ilustrações para sua visão dos efeitos injustos que a sorte pode ter e da inescapável conexão do destino de um indivíduo com o destino dos demais. Além disso, ter sido vetor das doenças que levaram dois de seus irmãos à morte teve consequências em seu senso de justiça similares àquelas formalizadas no artifício da posição original. Nesta, o indivíduo racional é obrigado a perceber que, numa vida em sociedade, o destino pessoal depende do destino de seus pares e da distribuição arbitrária de vantagens e desvantagens sociais. A solidariedade e a cooperação não se justificam apenas por sentimentos religiosos ou comunitários transcendentais, mas pela própria consciência de que a persecução de nossos fins depende da relação que mantemos com os outros. É justamente por essa conscientização que o indivíduo deve aceitar conceder parte de sua liberdade de escolha para um Estado redistributivo e protetor, capaz de mitigar as desigualdades e malefícios oriundos de causas arbitrárias como a classe de origem e nosso estado de saúde.


A posição original é uma das grandes contribuições de Rawls à filosofia política e uma das mais criticadas pelos seus pares. Justamente por ser totalmente hipotética e abstrata, ela é considerada um exercício cognitivo simples capaz de demonstrar teoricamente as falhas da concepção utilitarista de justiça e a validade da teoria da justiça como equidade. Porém, é no seu caráter hipotético que reside também sua maior fraqueza: como convencer os indivíduos reais das sociedades modernas, tendentes ao egoísmo, de que igualdades básicas são condição moral lógica dos valores liberais? Rawls tentou articular uma resposta para isso em sua segunda obra mais conhecida, O Liberalismo Político. Mas nela, seus teoremas abstratos perderam grande parte do seu poder analítico ao se misturarem com generalizações pouco rigorosas sobre as instituições, a cultura política pública e o bom senso (common sense) dos cidadãos das sociedades democráticas.


Por isso mesmo, parte importante dos debates em torno de sua teoria se preocupa em buscar arranjos institucionais capazes de emular, na vida real, as consequências da posição original, fazendo emergir algum senso de justiça igualitário em mentes racionais maximizadoras do auto interesse individual. No entanto, poucos discutem como eventos sociais arbitrários e imprevistos, como a presente pandemia, podem contribuir para a emergência de uma preocupação com o bem coletivo e a justiça social a partir de nossas preocupações egoístas. Note-se que a posição original não busca converter egoísmo em altruísmo, mas mostrar como o egoísmo racional no nível individual pode produzir contradições morais no nível social, ao contrário do que é propugnado de Adam Smith a Friedrich Hayek, para quem o egoísmo individual naturalmente geraria benefícios coletivos. Do mesmo modo, a pandemia não garante a conversão de egoísmo em altruísmo, ela apenas contribui para mostrar que o comportamento auto interessado de um indivíduo pode produzir resultados coletivos maléficos e, potencialmente, reduzir mais do que incrementar sua própria liberdade e qualidade de vida individuais.


É óbvio que a adesão a valores liberais-igualitários no mundo concreto depende de uma infinidade de fatores. Seria excessivamente simplista e inocente acreditar que tal sensibilidade se difundirá à medida que a pandemia avançar. Ao contrário, é o egoísmo de indivíduos e governos que parece preponderar em vários eventos recentes. Ademais, os impactos das pandemias na alteração das desigualdades estão longe de ser lineares e automáticos na história, pois ora aumentaram ora reduziram as desigualdades (e por razões bastante complexas). No entanto, uma vez essa epidemia controlada, cidadãos e políticos de sociedades democráticas ao redor do mundo terão que reavaliar suas concepções de justiça e parece hoje pouco provável que elas façam pouco caso de um Estado mais atuante. É nesse momento que uma concepção de justiça como equidade e uma concepção de Estado de bem-estar social podem se tornar mais palatáveis para um mundo sujeito a riscos e arbitrariedades globais. Nossa capacidade de responder a elas dependerá de um Estado forte, com políticas públicas de saúde e seguridade social capazes de atender números massivos de pessoas que caem nas malhas das transmissões de doenças e das transmissões de perdas econômicas em cascata, advindas dos efeitos das pandemias e epidemias sobre o mercado e sobre o próprio Estado, que sempre perde capacidade de arrecadação em momentos de recessão. E a possibilidade de epidemias e pandemias se tornarem mais frequentes não é mais uma futurologia catastrofista advinda do pânico social atual.


Parte de nós está isolada e em casa, acumulando algum conhecimento sobre o que está acontecendo com a sociedade em meio à pandemia e refletindo sobre medidas que mitiguem seus efeitos sobre nós, as pessoas próximas e a sociedade como um todo. Os riscos daqueles que não podem ficar em casa por motivos econômicos são assumidos por pessoas que não conseguem manter um nível de subsistência mínimo e não afetam apenas a eles, de modo que qualquer pessoa auto interessada, mesmo sem nenhuma capacidade empática, deve defender a proteção social para os que estão economicamente vulneráveis. Podemos de fato acreditar em dado momento que os custos desse isolamento social não compensam seus incertos benefícios, sobretudo para aquelas e aqueles sem comorbidades graves. Mas esse egoísmo pode ser mobilizado em sentido contrário para destacar as suas próprias limitações e contradições, trazendo à tona certo senso de justiça à mente do mais filosoficamente utilitarista dos indivíduos. Apontar para esta potencialidade política, dentro da esfera pública e visando fazer parte de movimentos de opinião pública em prol de justiça social no enfrentamento da pandemia de Covid-19, é uma das maiores contribuições das argumentações de inspiração rawlsiana neste momento.



NOTAS


[1] Este texto é parte de uma reflexão maior que parte do rawlsianismo para os limites das argumentações morais neoliberais, das teorias da renda básica universal e das teorias da justiça global sobre o direito à saúde frente a pandemias. Neste, discutimos especificamente os limites das argumentações utilitaristas para se pensar as políticas estatais contra a pandemia de Covid-19.


[2] Por questões de estilo e comunicabilidade, daqui para frente falaremos apenas em “indivíduos auto interessados” como um conceito guarda-chuva que congrega todos os requisitos pressupostos pela posição original rawlsiana. Resumidamente, ela pressupõe um indivíduo:


(a) Auto interessado: que tem interesse nos próprios interesses, direitos, oportunidades, bem-estar e qualidade de vida.


(b) Mutuamente desinteressado: que é livre da inveja e de vontades a respeito da vida dos outros, isto é, que não pretende utilizar os outros como meios para atingir seus objetivos.


(c) Racional: que sabe adequar meios a fins, utilizando o mínimo possível de recursos para obter o máximo possível de ganhos.


(d) Maximizador: que busca maximizar racionalmente seus ganhos.



REFERÊNCIAS


POGGE, Thomas. (2007), His Life and Theory of Justice. Oxford: Oxford University Press.


RAWLS, John. (2000), Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes.


RAWLS, John. (2000), O Liberalismo Político. São Paulo: Ática.





Luiz Augusto Campos é Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e Editor-Chefe de DADOS – Revista de Ciências Sociais.

San Romanelli Assumpção é Professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj).


Como citar esse texto: CAMPOS, Luiz Augusto; ASSUMPÇÃO, San Romanelli. (2020), "A Dimensão Moral do Isolamento: contribuições da teoria de John Rawls para pensar as respostas à pandemia". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/04/28/A-DIMENSAO-MORAL-DO-ISOLAMENTO-CONTRIBUICOES-DA-TEORIA-DE-JOHN-RAWLS-PARA-PENSAR-AS-RESPOSTAS-PANDEMIA


Editora Responsável: Marcia Rangel Candido




Relacionados
bottom of page